Periódico
Manchete, nº 820
Publicada, posteriormente, nos livros O anjo bêbado, de 1969, e Cisne de feltro, de 2001.

Faz um ano que Maria José morreu. Era meiga quase sempre e violenta quando necessário. Eu era menino e apanhava de um companheiro maior, quando ela me gritou da sacada se eu não via a pedra que marcava o gol. Dei uma pedrada no outro e acabei com a briga como por milagre.

Visitava os miseráveis, internava indigentes enfermos, devotava-se ao alívio de misérias físicas e morais do próximo, estudava o mistério teológico, exigia sempre o mais difícil de si mesma, ingressou na Ordem Terceira de São Francisco, comungava todos os dias; mas nunca deixou de ter na gaveta um revólver e uma caixa de balas. O revólver que recebera, menina-e-moça, das mãos do seu pai e que ela empunhou no quintal noturno, perseguindo um ladrão, para espanto de meus cinco anos.

Já perto dos setenta anos, ela explicava para um amigo meu que tinha chegado à humildade da velhice; já não se importava com quem tentasse ofendê-la, mas conservava o revólver para a defesa dos filhos e dos netos.

Tratou-me com a dureza e o carinho que mereciam a revolta e o verdor da minha infância. Ensinou-me a ler as primeiras sentenças francesas; me falava no Cura de Ars e nos dois Franciscos, o de Sales e o de Assis; apresentou-me aos contos de Edgar Poe e aos poemas de Baudelaire; dizia-me sorrindo versos de Antônio Nobre, que decorara em menina; discutia comigo as ideias finais de Tolstói; ouvia maternalmente meus contos toscos; quando me desgarrei nos primeiros enleios adolescentes, Maria José com irônico afeto me repetia a advertência de Drummond: "Paulo, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira que ninguém sabe o que será."

Logo que me fiz homenzinho, deixou de repente a dureza e se fez a minha amiga: nada me perguntava, adivinhava tudo.

Terna e firme, nunca lhe vi a fraqueza da pieguice. Com o gosto espontâneo da qualidade das coisas, renunciou às vaidades mais singelas. Sensível, alegre, aprendeu a encarar o sofrimento de olhos lúcidos. Fiel à disciplina religiosa, compreendia celestialmente as almas que se transviam. Fé, esperança e caridade eram para ela a flecha e o alvo das criaturas.

Tornara-se tão íntima da substância terrestre – a dor – que se fazia difícil para os médicos saber o que sentia; se insistiam, acaba dizendo que doía um pouco, por delicadeza.

Capaz de longos jejuns e abstinências, já no final da vida, podia acompanhar um casal amigo a Copacabana, passar do bar da moda ao restaurante diferente, beber dois ou três uísques em santa serenidade e aceitar com alegria um prato exótico.

Gostava das pessoas erradas, consumidas de paixão, admirava São Paulo e Santo Agostinho, acreditava que era preciso se fazer violência para entrar no reino celeste.

Poucas horas antes do fim, pediu um conhaque e sorriu, destemida e doce, como quem vai partir para o céu. Santificar-se. Deus era o dia e a noite de seu coração, o Pai, a piedade e o fogo do espírito. Perdi quem me amava e perdoava, quem me encomendava à compaixão do criador e me defendia contra o mundo de revólver na mão.

paulo-mendes-campos
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