Periódico
Manchete, nº 610
Publicada também em: livro O colunista do morro, de 1965.

Era um domingo de duro estio e o cão, lúcido desde a faiscante madrugada, depois de ter percorrido em inelutável ziguezague as ruas desarborizadas do Centro, zonzo de calor, viu, com o seu fraco poder visual, um halo de sombra incrustado na massa de luz que torturava o mundo. Era a porta. O corpo todo pulsando na recuperação da fadiga, a língua suada e amarga, o cão entrou na catedral, onde se celebrava no momento um ofício fúnebre.

 

Como quem é transportado dormindo para o outro mundo, como quem abre uma simples porta no silêncio e dá de chofre com criaturas nuas em uma festa, o cão entrou na catedral. Os olhos, não predestinados para a visão, acomodaram-se com alívio na penumbra. Com as narinas violentamente ativadas, ele começou a ser, em vez de senhor, a vítima do olfato.

 

A primeira impressão era de um odor incomparavelmente amplo, desmedido como se todos os demais odores só existissem para formar as parcelas do espaçoso aroma que ele poderia percorrer em infinitos sentidos. Deslumbrado com a súbita e vertiginosa versatilidade do faro, o cão moveu devagar as narinas em todas as direções, volteou à esquerda, à direita, ergueu o focinho para o alto, inclinando-o em seguida, a fim de deixar resvalar por sua cabeça flechas consecutivas de cheiros os mais diversos.

 

O movimento brusco de encontro à imponência esmagadora dos aromas ― ridícula tentativa de enquadrá-los na experiência do passado — convenceu o cão de que as grandes manifestações da natureza sobrepassam aos gritos a alma (lama) canina. Por isso, imobilizou as quatro patas sobre a laje fresca de um túmulo, e resolveu, antes de tudo, achar, humildemente, bonito. O peito arfava na angústia da caminhada matinal em busca de lixo e cadelas; a língua porejava; os olhos ficaram semicerrados, não só do prazer que os aveludava, mas do medo de que o enxotassem daquela medida nova, fosse lá o que fosse; paraíso de ilusão ou inqualificável inferno dos cachorros. Valia a pena.

 

Desse modo, prossegue a imagem: sobre o retângulo da tumba de um arcebispo, com uma inscrição latina de caracteres esguios esculpidos a esquadro há um século e meio, um cão de subúrbio, acostumado a fome e a pedra, sem história, sem destino, um cão investe sobre o antes, o agora e o depois, cheirando com vigor o universo.

 

O universo é feito de grandes massas aromáticas que se deslocam velozmente, umas equilibrando as outras, só resultando da incrível harmonia a desagradável certeza da iminência de uma catástrofe rápida, pórtico fulgurante e retumbante do silêncio absoluto.

 

Ou não? A lama do cão (alma), farejando os desvãos odoríferos do espaço, borbulhava de untuosos adjetivos, que o enchiam como um ralo na enxurrada. Assim, a falta de literatura do cão no momento, por uma via transversa, encontrava a terra antípoda, isto é, a tentação da linguagem, a pior, a mais vaga. Mas era a primeira vez que acontecia. E enquanto ia acontecendo, os cheiros se armavam por cima do cão que estava por cima do túmulo. Construíam, contraíam-se, seguiam uma direção elementar, e, quando parecia que iriam definir-se em um ponto qualquer esclarecedor, descontraíam-se, fugiam em nervuras finas, misturavam-se a novos olores, que, por sua vez, retomavam os motivos precedentes, imbricavam-se em nuanças espetacularmente compassadas, rendilhavam-se em exalações menores, rolavam em naves inodoras, mas perfeitas e necessárias, sistematizavam-se em contrastes súbitos, de doce e acre, de segurança e risco, de vago e firme, de forte e frágil, de gratuito e impregnado, de fragrante e náusea, de recendente e tímido, de capitoso e graveolente, cheiros repassados de cheiros, paralisados em retábulos úmidos, a viajar em audaciosas arestas, a difundir-se em pistas claras e escuras, a seriar-se em balaústres argentinos e dourados, cheiros de todo o universo, de sexo e morte, cheiros a arquitetar-se na imensa abóbada em fuga, feitos de cansaço de homem, de sombras corpóreas, de carne luminosa de criança, de pelos suados e velhos, de algodão, de seda, de couros diferentes, vivos e mortos, da ogiva branca do lírio, de círios em colunata em redor do cadáver, de rosas admiravelmente concêntricas, incenso em espiral, brilhantinas hostis, perfumes em tropel, entalhes redolentes não se sabe onde, arcebispos em pó, o hálito sutil dos séculos idos e vindouros ― fragrâncias e pestilências a buscar um estilo, uma ordem, uma razão muito acima das narinas terrestres de um cão.

 

Tudo somado, o cão sentiu a vertigem e latiu na catedral. Três vezes o cão latiu enquanto prosseguia o ofício do homem morto. Depois, tendo ferido os olhos nos vitrais, ganiu, deu alguns passos para a frente e foi estender-se, humilhado, sobre o túmulo de outro arcebispo, morto há quase dois séculos. E aí, já farto do poder olfativo, foi remoendo, antes de dormir, os inexplicáveis da existência, imaginando o que pode imaginar um cão: um ser feito de si mesmo, de nada, um ser criador de todos os cães e todos os aromas. Foi quando o sacristão o enxotou para o inferno da rua plena de luz. Temas: Animais; religião; espiritualidade.

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