Fonte: Com vocês, Antônio Maria,  Paz e Terra, 1994, pp. 68-70. Publicada, originalmente, em O Jornal, de 12/05/1963.

Os ofícios de maio, na casa grande do engenho, começavam, ao escurecer, depois que todos se reuniam. Todos eram as moças da família de banho tomado, os cabelos molhados, escorridos, cheirando a sândalo. Eram as criadas. Eram as mulheres dos trabalhadores do eito, com as cabeças cobertas e os pés descalços. Vinham de longe, atravessando brejos, subindo e descendo ladeiras. Chovia, em maio. As mulheres menos pobres tinham sapatos, mas traziam na mão "porque pé estraga muito o sapato". Não era importante calçar o sapato. Tê-lo, sim. Significava que sua dona já era uma pessoa de certo trato. 

Todas, com a cabeça coberta, se acomodavam num banco de madeira, ao fundo do "quarto dos santos".

Entrava, então, a "senhora do engenho", com a fita vermelha do Apostolado da Oração, uma mantilha negra, de rendas. O "Adoremu", na mão. Atrás dela, uma música lenta, majestosa, que não se ouvia, mas se sentia, e era tão real, aquela música, que alguns a viam. Todos se punham de pé. E o tempo, se não parava, ficava mais demorado, enquanto a senhora se acomodava no genuflexório, fitava súplica os olhos de Maria e, abrindo o livro, desenhava e dizia o "Em Nome do Padre". Aí, então, o tempo retomava a marcha de antes. 

O Santuário, de nogueira ou de jacarandá, continha as imagens de Maria e de sua mãe, a senhora Sant'Ana. Jesus Cristo, vestido mas com o coração à mostra, bem no peito. A outra imagem era mais das vezes a de Santo Antônio, com o Menino Jesus na palma da mão. O santuário sobre a cômoda, coberta com a toalha de linho, bordada, onde se liam VJMJ, com louvor à Sagrada Família. 

Rezava-se o terço. Cada dezena de aves-marias precedida da enunciação de um mistério. Os Mistérios Gozosos. De cada mistério, um fruto. A humildade, por exemplo. Seguia-se a ladainha e cada invocação era respondida com um "rogai por nós":

Santa Mãe de Deus
Santa Virgem das virgens
Mãe das divinas graças...

Aí, embora não fosse sempre, podia se rezar o Magnificat, cântico de Maria, ao receber a Anunciação. Uma das orações mais bonitas do culto à Virgem Santíssima: "Minh'alma engrandece ao Senhor e meu espírito exulta em Deus, meu salvador. Porque pôs os olhos em sua humilde serva, todas as gerações me chamarão bem-aventurada. 

O enlevo e a fé estão fluindo ali, aprisionados naquele quarto de santos. As velas acesas, havia os gestos das chamas, em sombras, nas paredes. As flores. Havia também os gestos das flores, que se iam curvando nas bordas dos jarros. Um gesto agônico, nem sempre compreendido. Havia os gestos e os cheiros, das flores e das velas. Então, se recitava o Ofício de Maria Santíssima: "Agora, lábios meus, dizei, anunciai...". E vozes doloridas respondiam: "Os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus". Mais adiante, as palavras se iam adensando, e se tornavam grandiosas, fazendo um sentido vetusto: "Deus vos salve relógio, que andando atrasado". E as vozes: "Serviu de sinal ao Verbo Encarnado".

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