João do Rio (mas não só)

Largo de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro-RJ, 1895 circa. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Paulo Barreto, o João do Rio, a partir de agora incorporado ao time do Portal da Crônica Brasileira, é merecedor, também aqui, não de um, mas de dois tapetes vermelhos, um para cada enorme contribuição que nos deixou, na dupla condição de cronista e de repórter. Numa atividade como na outra, assinando-se bem pouco com seu nome de pia, e sim com um punhado de pseudônimos, dos quais o mais conhecido é João do Rio, o escritor carioca, falecido aos 41 anos há pouco mais de um século – 23 de junho de 1921 –, foi não somente um craque como um notável inovador.

Não há exagero em considerá-lo, na história da imprensa brasileira, o primeiro repórter genuíno, diferenciado de seus pares num tempo em que a maioria dos jornalistas, enfurnados no bem-bom de suas redações, não se davam ao trabalho de gastar sola de sapato. Paulo Barreto, ao contrário, ia buscar lá fora as histórias, os personagens, a vida em primeira mão. Não causa espanto, assim, o fato de que o autor de A alma encantadora das ruas tenha morrido, de um ataque cardíaco, dentro de um táxi, no burburinho da rua do Catete, próximo ao centro da cidade. A vocação de flâneur apaixonado – “Flanar é a distinção de perambular com inteligência”, definiu certa vez – lhe permitiu inovar também a crônica, conferindo a esse gênero uma leveza e graça capazes de ainda hoje seduzir o leitor com aquilo que em princípio escrevia para o dia, no máximo para a semana seguinte. E, por mais carioca que fosse, sua prosa tinha e segue tendo o que dizer a leitores de todo canto do Brasil.

Diante de um escrito de João do Rio, chega a ser difícil decidir se se trata de crônica ou de reportagem – mas pouco importa: o que conta é o prazer que nos acompanha da primeira à última linha, ainda mais alimentado por temas que são sempre interessantes. Assuntos cuja escolha, às vezes, pode nos surpreender: quem imaginaria Paulo Barreto, um dândi, a misturar-se decididamente, por iniciativa própria, a homens rústicos e suarentos, numa canoa, para que pudesse descrever, em “Os trabalhadores da estiva”, o áspero ofício de quem depende dos músculos para ganhar a vida? Com igual disposição, desta vez em terra firme, ele percorre livrarias e sebos do Rio de Janeiro para constatar, em “O Brasil lê”, que seus compatriotas, tantas vezes descritos como bugres de “tacape e flecha”, andam mais que nunca atracados a livros. Naquele novembro de 1903, constata João do Rio, os livreiros “examinam as contas e veem que as suas edições são muito maiores e muito mais contínuas que há dez anos.” Poucos meses antes, outro giro pela cidade lhe permitira concluir que, graças a obras portuárias, campanhas de saúde pública e abertura de ruas, o Rio, “convalescente” de crises brabas, vivia algo como uma “estreia”.

Pela mesma época, o cronista e repórter comemorou também, com “Iluminação no Passeio Público”, o fato que esse recanto da cidade, “com os melhoramentos que lhe deu a Prefeitura”, voltava a ser “um ponto de reunião amável” – para o pasmo de gansos e os marrecos que ali viviam, até então sossegados”. Agora, “andam espantados...”, verificou João do Rio: “Há conciliábulos animados à beira d’água, expressivos arrepios de asas, significativas bicadas, confidenciais grasnidos...” De fato, prossegue ele, “a tribo dos palmípedes vive assombrada, depois que há iluminação farta e música alegre no terraço, fonte luminosa no jardim, grande massa de povo pelas alamedas perfumadas.” Mais festivo, talvez, só o carnaval do Rio, que “Joe”, um dos pseudônimos de Paulo Barreto, celebrará em “Poean” – “cântico de vitória", em grego, palavra que na publicação original, em 1916, um erro tipográfico converteu em “Poeau”. Nesse texto, o cronista cravejou de rótulos a maior festa popular de sua cidade: “fúria aplacadora”, “momento supremo de loucura!”, “paixão de todos nós!”, “frenesi tumultuário”, “vendaval dos sentidos!”, “espasmo da fera na civilização!”

Paulo Barreto é também humorista dos melhores, e era com ironia que detectava e retratava as modas e modismos da então Capital do país. Gordo, com certeza avesso a tudo que sugerisse cuidados com o corpo que não fossem estéticos, em 1905 ele se interessou por uma novidade farta em letras dobradas, “o ‘foot-ball’”. “Teremos nós um novo sport em moda?”, indagou o cronista depois de visitar, num domingo, a cancha gramada do Fluminense (que no ano seguinte, isto não poderia saber, seria o vencedor do primeiro campeonato da Liga Metropolitana de Foot-ball). Indagou e ele mesmo respondeu: “Não há dúvida”. Tinha ficado para trás, avaliou João do Rio, o tempo em que, 20 anos antes, “a mocidade carioca não sentia a necessidade urgente de desenvolver os músculos”. Os meninos daquele fim de século, debochou ele, “dedicavam-se ao sport de fazer versos maus. Eram todos poetas aos 15 anos e usavam lunetas de míope. De um único exercício se cuidava então: da capoeiragem.”

Em “Clic-clac! O fotógrafo!”, seu alter ego “José Antonio José” flagrou “mais um exagero, mais uma doença nervosa: a da informação fotográfica, a da reportagem fotográfica, a do diletantismo fotográfico, a da exibição fotográfica – a loucura da fotografia.” Naquele ano, 1916, concluiu ele com divertida exasperação, “toda a cidade é fotógrafa.” Ia mais longe a mania de “kodakizar”: “O mundo não tem a obsessão do espelho, tem a obsessão da fotografia!” O fotógrafo, um “tirano”, era “o agente da vaidade”.

O mesmo senso de humor, agora mais cáustico, lhe permitiu dar forma a dois personagens caricatos que, embora antípodas no temperamento, e tendo sido criados com anos de intervalo, um em 1909, outro em 1916, poderiam constituir uma bela e divertida dupla, tanto quanto o Gordo e o Magro com seus corpos de volumes tão diversos. O primeiro a nascer foi Justino Antônio, “Um mendigo original” – original porque, entre outras bizarrices, ele não pedia, e sim cobrava esmola, seguríssimo de seus direitos de credor social. “Devo notar que há já dois sábados nada me dás”, chegou a dizer a uma de suas vítimas. Perguntado por que não trabalhava, respondeu sem hesitar: “Porque é inútil”. Sua tranquilidade contrasta com a agonia permanente do Clodomiro Gomes de “O homem que não tem o que fazer”, tão endinheirado quanto atormentado – cuja história, aliás, além de ler, se recomenda vivamente ouvir aqui, na interpretação de Lyza Brasil, professora de português e de literaturas. O pobre moço rico vive reclamando exatamente de possuir fortuna, e reage mal se as queixas resultam em puxão de orelha: “Todo o meu mal é não ser como vocês”, choraminga ele, “é não ter que trabalhar a sério para ganhar o meu sustento.” Resultado: “Ando cheio de preocupações, sem tempo, sem fé, sem alegria. Sabes lá o que é um homem não ter o que fazer? A minha vida é uma tortura!”.