Fonte: coluna "Pall-Mall-Rio", O Paiz, 8/08/1916, sob o pseudônimo de José Antonio José.

 –  Ah! um fotógrafo!

A cena foi rápida. Era na Avenida. Madame de Figueroa abriu nervosamente o leque, baixou a cabeça e deitou quase a correr. Na sua frente, porém, um sujeito louro, com o kodak na mão, ria a bom rir e quando a linda senhora passou a seu lado, cumprimentou:

 – V. Exa. fez muito mal, minha senhora. A chapa vai sair preta.

 – Vai sair preta?

 – Pois está claro! A cabeça curvada, o leque obscurecendo o rosto...

 – Mas o senhor vai fazer sair isto?

 – É para um jornal ilustrado. Com sua licença...

 – Tem de sair mesmo?

 – É fatal.

Madame de Figueroa mordeu o lábio, hesitou e, de súbito, resolvida:

 – Então, se não há remédio, tire outro instantâneo direito.

E ficou de pé, numa pose de ave real, sorrindo, enquanto o moço louro de novo a kodakizava.

Era na Avenida e a cena foi rápida. Mas, em outras ruas, em outros pontos da cidade, quantas cenas idênticas a essa se passam? Porque nós temos agora mais um exagero, mais uma doença nervosa: a da informação fotográfica, a da reportagem fotográfica, a do diletantismo fotográfico, a da exibição fotográfica – a loucura da fotografia.

Já não há propriamente mais fotógrafos profissionais, porque toda a cidade é fotógrafa. Já não há propriamente pessoas notáveis cuja fisionomia se faça necessidade informativa dos jornais, porque não há cara que não seja publicada. Não só as caras. As caras não bastam. As ruas, as casas, os aspectos dos céus, os combustores da iluminação, os carros, as carroças, as montanhas, as árvores. Há cinco anos, em visita a qualquer família da mediania burguesa, o visitante contava com quatro ou cinco desastres fatais: ouvir os progressos da filha mais velha ao piano, admirar as aquarelas da petiza do meio, aplaudir o caçula que recitava de cor versinhos estropiados. Agora não. Agora é só fotografia.

 – Esteve ontem no footing?

 – Não, minha senhora.

 – Foi pena. Estavam lá os fotógrafos de todos os jornais ilustrados. E contaram-me que um dos cinematógrafos mandou tirar uma fita. Aparecemos todos.

 – Esta Maria é vaidosa!... Não se farta! Olhe que já tem saído numa porção de instantâneos...

Sim! É a verdade dolorosa! O mundo não tem a obsessão do espelho, tem a obsessão da fotografia!

Há uma senhora que saiu à rua? Zás! Kodak nela! Você vai ali à confeitaria? Instantâneo! Não se anda nas calçadas sem desconfiar dos transeuntes, não se sai à rua sem estudar o andar, por causa das dúvidas não se atravessa uma praça sem a pergunta íntima:

 – Quantos fotógrafos estarão agora fotografando-me?

E não é mesmo preciso sair à rua. Na Câmara os Deputados estão sentados e, de repente, um tiro de magnésio: foi um instantâneo. Nas Secretarias, os funcionários esforçadamente escrevem cartas às namoradas, quando de súbito invadem as salas batalhões de homens de unhas envernizadas e clic! clac! Tome instantâneo. Nas fábricas os operários estão a palestrar sobre a última greve e o direito que todo operário tem de ver a diária aumentada, as horas de labor diminuídas e aparece um homem, ergue a mão e paf! Bifa [1] o quadro natural.

E como já se dão as senhoras na missa, às compras, nos banquetes, escrevendo no seu hall íntimo, e os cavalheiros em mangas de camisa no seu escritório e as cocotes em menores e os presidentes de irmandades em grupos e os piqueniques carnavalescos – é muito provável que muito em breve um fotógrafo, se não for chamado, solicitado, rogado antes – entre em casa de uma pessoa qualquer e exija, seja ela ministro ou contínuo:

 – Dispa-se e mostre-me como vai para o banheiro! Quero tirar um instantâneo!

E, tremendo de gozo, a vítima, só com a ideia do instantâneo, correrá ao banheiro, mesmo que tenha por esse sítio do lar uma inexplicável implicância...

É que o fotógrafo é o tirano, é o agente da vaidade, é o Boreas [2] da grande tolice universal, é o único sacerdote acreditado no fandango do mundo. Quando um homem se erige em fotógrafo, a sociedade prostra-se.

 –  Você tira retratos?

 – E instantâneos.

 – Venha daí, vamos jantar.

A gente encontra na flora uma enorme variedade de representantes: o fotógrafo artístico de quadros, o amador da fotografia d’arte, que tira retratos de senhoras bonitas em ambientes lânguidos e aspectos do luar em lagos e florestas; o fotógrafo da cidade para cartões-postais; o fotógrafo repórter; o fotógrafo ilustrador a quem não escapam nem as vagas das ressacas da baía; o turbilhão de fotógrafos amadores; o fotógrafo high-life; o fotógrafo pândego que inventa por justaposição de chapas cenas picarescas de pessoas graves; o fotógrafo instalado, vieux genre [3] ,  que olha para toda a flora com ares de pai nobre abandonado pelo filho pródigo... Ele entra, há o estremeção emocionante da massa, e ei-lo a manejar todos como polichinelos.

    – Parem!

     Todos param.

 – Vire a cabeça!
    Todos viram.

 – Olhe por aqui! Todos olham.

É que ele tem esse direito. Não só aqui. Em toda parte do mundo.Clic! Clac! O fotógrafo! Mas é o senhor do mundo, o senhor da vaidade universal, o único amigo que o Nilo Peçanha [4] respeita sempre, o único cidadão que põe à vontade o Bezerra ministro [5] o prefeito interino, o Wenceslau [6] transitório, todas as sociedades e até mesmo a alta sociedade!



 [1] Furtar
[2] Na mitologia grega, o deus do vento frio de norte, representado por um velho de caráter violento.  
[3] À moda antiga.
[4]
 Político fluminense, presidente da República entre 1909 e 1910, presidente do Estado do Rio de Janeiro entre 1914 e 1917.  
[5] José Rufino Bezerra Cavalcanti (1865-1922) político pernambucano, ministro da Agricultura entre 1915 e 1917.,  
[6]
 Venceslau Brás (1868-1966) político mineiro, presidente da Eepública entre 1914 e 1918.  

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