João do Rio (Paulo Barreto) foi antes de mais nada um inovador da imprensa brasileira, utilizando antes de seus companheiros, e melhor que eles, as então novidades da reportagem in loco e da entrevista, tirando o jornalismo do início do século 20 das mofadas redações e jogando-o nas ruas. Seu talento literário, entretanto, fez que grande parte de seus textos tenha o formato de crônica, gênero narrado na primeira pessoa e com recursos estilísticos que o colocam entre a reportagem e o conto. Os estudiosos oscilam em considerá-lo o precursor, o pioneiro ou o criador da chamada “crônica carioca”. Seja como for, é um de seus principais expoentes e certamente o melhor.
Sua importância na história da crônica brasileira, mais particularmente do Rio de Janeiro, é imensa. Famosíssimo enquanto vivo (seu funeral reuniu mais de 100 mil pessoas, em 1921, um quarto da população da cidade), foi rapidamente esquecido nas décadas seguintes, mas desde 1970 vem sendo cada vez mais revisitado. Muitos de seus livros foram reeditados, assim como coletâneas de contos ou crônicas, privilégio compartilhado apenas por dois autores seus contemporâneos, Machado de Assis e Lima Barreto.
João do Rio abordou, entre 1900 e 1921, praticamente todos os aspectos da vida na Capital Federal. Subiu numa favela, frequentou terreiros de candomblé e macumba, rodas de samba, casas de ópio, cabarés e coxias de teatro. Assistiu às reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, que modernizaram o centro da capital. Denunciou as condições desumanas do trabalho operário. Mas também retratou as classes dominantes: presidentes da República, políticos e socialites, a Academia Brasileira de Letras, literatos do Brasil e Portugal. E desde cedo mostrou posições libertárias, apoiando o voto feminino e o divórcio décadas antes de sua adoção pelo Brasil. Foi também um dos poucos intelectuais de sua época a não ocupar emprego público, evoluindo da quase pobreza para a quase riqueza apenas com seu trabalho na imprensa e na literatura.
Um mestre na crônica de costumes. Um expoente na crônica mundana. Sem falar nos livros de contos, romances, peças de teatro e conferências – que fogem ao nosso assunto. Nenhum outro cronista da cidade, antes ou depois dele, teve tanta mobilidade social. É uma riquíssima fonte de informação para os historiadores dos costumes, mas igualmente um prazer de leitura para leigos, mesclando o rebuscado estilo art nouveau e a objetividade jornalística com pitadas anarquistas, ironias LGBT, muito humor e crítica social.
As religiões no Rio, A alma encantadora das ruas, Os dias passam e outros livros de sua autoria estão entre os clássicos obrigatórios para conhecer a história da cidade. Um século depois de seu desaparecimento, João do Rio continua atual e interessante. Alguns de seus textos podiam ter sido escritos hoje. Precisa ser lido e relido.
Nascimento em 8 de agosto na rua do Hospício 284, atual Buenos Aires, no Rio de Janeiro. Pai: Alfredo Coelho Barreto, branco, gaúcho, professor de matemática. Mãe: Florência Cristóvão dos Santos, mestiça, carioca, filha natural, porém reconhecida, de um médico de família importante. Recebe o sacramento da apresentação no templo da Igreja Positivista Brasileira como João Paulo Alberto Coelho Barreto.
Estudos informais ministrados pelo próprio pai e curto período no colégio São Bento.
1899
Em julho, com 18 anos incompletos, primeiro artigo publicado na imprensa, uma crítica de teatro em A Tribuna.
1899-1900
Colaboração regular em A Cidade no Rio onde escreve crítica literária e de artes plásticas com o pseudônimo Claude. Também seus primeiros contos, como Paulo Barreto.
1901-1902
Colaboração esparsa em O Paiz, O Dia e Correio Mercantil.
1903
Estreia na Gazeta de Notícias, onde ficará 13 anos, com a coluna “A Cidade”, sob o pseudônimo X.
1904
Adota o pseudônimo João do Rio em 26 de novembro. Publica a série de reportagens "As Religiões no Rio", com destaque para as que abordavam os cultos afro-brasileiros, então um tabu na imprensa. No final do ano elas são reunidas no livro homônimo, que logo se transforma em best-seller.
"O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa." (As religiões no Rio, José Olympio, 2006, p. 15.)
1905
Série de entrevistas com escritores intitulada "O Momento Literário", também transformada em livro de sucesso.
Tradução da peça Salomé, de Oscar Wilde, publicada na revista Kosmos.
1906
Candidatura derrotada para a Academia Brasileira de Letras.
Estreia como autor teatral com a revista Chic-Chic, um fracasso de crítica.
1907
Estreia do drama em um ato Clotilde, com sucesso moderado.
Nova candidatura à Academia Brasileira de Letras – retirada sob pressão diante da derrota certa.
1908
Livro A alma encantadora das ruas, reunião de crônicas, artigos e conferências sobre a cidade do Rio de Janeiro e o espírito carioca.
"Apesar dos grafofones nos hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, apesar da intensa multiplicação dos pianos, eles foram voltando, um a um ou em bandos, como as andorinhas imigrantes, e, de novo, as tascas, as baiúcas, os cafés, os hotéis baratos, encheram-se de canções, de vozes de violão e de guitarra e, de novo, pelas ruas os realejos, os violinos, as gaitas, recomeçaram o seu triunfo." ("Músicos ambulantes", A alma encantadora das ruas, Marin Claret, 2007, p. 98.)
Coluna “Cinematographo”, que ocupa uma página inteira do jornal, assinada com o pseudônimo Joe.
1909
Livro Cinematographo, referente à Exposição Nacional de 1908, com parte das crônicas publicadas na coluna homônima.
Colaboração na revista A Ilustração Brasileira, que vai até o ano seguinte; também nos jornais A Notícia e O Comércio de São Paulo, essas até 1912.
Primeira viagem à Europa: Lisboa e Paris.
1910
Eleito para a Academia Brasileira de Letras por 23 votos a 5 do outro candidato.
Livro de contos Dentro da noite com narrativas mórbidas decadentistas e próximas da literatura de horror.
"Imaginem vocês um homem com todos os instintos de perversão da nossa roda como facilmente pode empolgar uma alma ingênua, seduzida apenas pelo exterior." ("O monstro", Dentro da noite, Antiqua, 2002, p. 115.)
Livro Fados, canções e danças de Portugal, com partituras musicais e letras de músicas.
Segunda viagem à Europa: Lisboa, Paris e várias cidades da Itália.
1911
Livros Psicologia urbana (conferências), Vida vertiginosa (crônicas), Portugal d’agora (reportagens).
O romance A profissão de Jacques Pedreira teve a edição destruída a pedido do autor sob a alegação de erros tipográficos. Em 1971 dois exemplares foram encontrados na biblioteca do autor doada ao Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro.
1912
Estreia no Teatro Municipal com grande sucesso a peça A bela Madame Vargas, posteriormente encenada também em Lisboa e Buenos Aires.
Livro Os dias passam, nome de uma coluna homônima assinada com o pseudônimo Joe.
1913
Terceira viagem à Europa. Além de Lisboa e Paris, dessa vez também Inglaterra, Alemanha, Turquia, Grécia, Palestina e Egito.
1914
Segundo período de colaboração na revista A Ilustração Brasileira, que irá até o ano seguinte.
1915
A peça Eva, uma comédia sofisticada, estreia em São Paulo com sucesso apenas moderado.
Viagem a Buenos Aires.
Desligamento da Gazeta de Notícias e mudança para O Paiz.
Colaboração em A Rua e Correio Paulistano.
Revista binacional Atlântida, codirigida pelo português João de Barros, dedicada ao intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil.
1916
Livro Crônicas e frases de Godofredo de Alencar.
Coluna “A Semana Elegante” na Revista da Semana, com o pseudônimo José Antonio José.
Ciceroneia a bailarina americana Isadora Duncan no Rio e em São Paulo.
1917
Coluna “Pall-Mall-Rio” como José Antonio José. Livros Pall-Mall-Rio (crônica social) e Nos tempos de Venceslau (crônicas).
Fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT).
1918
Romance A correspondência de uma estação de cura.
"Não há ninguém doente. As mazelas, os reumatismos, as seborreias – o mobiliário estragado da sociedade fica por aí noutras hospedarias. Estamos num hotel snob." (A correspondência de uma estação de cura, Scipione, 1992, p. 3.)
1919
Quarta viagem à Europa, como correspondente de O Paiz na Conferência de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial.
Livros A mulher e os espelhos (contos), Na Conferência de Paz (três volumes de crônicas e reportagens) e Adiante! (conferências).
1920
Funda seu próprio jornal, A Pátria, que faz cerrada oposição ao governo de Epitácio Pessoa.
1921
Livros Ramo de loiro e Rosário da ilusão.
Morre subitamente, aos 41 anos, em 2 de junho, de colapso cardíaco, num táxi na rua Bento Lisboa, no bairro do Flamengo. Ao seu enterro compareceram mais de 100 mil pessoas.
"Sua morte não traz, como tantas outras, o desespero e a desolação. Não! Ela, como toda a sua vida nas letras e na imprensa, é o seu derradeiro artigo, a sua última profissão de fé." (A Pátria, 26/06/1921, p. 1.)
1932
Livro póstumo publicado pela Sociedade Luso-Brasileira Paulo Barreto, com inéditos: Celebridades, desejo.
*João Carlos Rodrigues é jornalista, pesquisador, roteirista de cinema e diretor de vídeos. Autor de Histórias de gente alegre (1981), O negro brasileiro e o cinema (1988), Catálogo bibliográfico de João do Rio (1994) e João do Rio: uma biografia (1996) relançado como João do Rio: vida, paixão e obra (2010).