Fonte: Crônicas efêmeras: João do Rio na Revista da Semana.  Pesquisa e apresentação de Niobe Abreu Peixoto, Ateliê Editorial, 2001, pp. 60-61. Publicada, originalmente, na Revista da Semana, de 4/03/1916, sob o pseudônimo de Joe.

Carnaval do Rio, momento supremo de loucura! — Como eu te vejo contente, e cara suada, o pijama sobre a pele, o riso no lábio, o entusiasmo de cada artéria a luzir-te no olhar! Como eu compreendo, ó mocidade da alma urbana, ó fênix da alegria, a tua precipitação, o arranco com que vais para a rua! 

Dentro de algumas horas, com as primeiras luzes, andarás zabumbando, gritando, guizalhando, berrando no torvelinho da cor e do som, divino evoé! de uma população inteira... 

Carnaval do Rio, gargalhada desesperada! — É impossível manter os nervos, ajustar as ideias quando lá fora estrugem os bombos, rufam os tambores, taratelinam os pratos, roem, roncam, xequereiam os instrumentos dos negros da África e dos índios da América na exasperação do delírio. É impossível aconselhar-te, quando os nossos olhos têm a prévia visão de Arlequim desfeito pela multidão vermelho, azul, verde, laranja, roxo, violeta, amarelo, nas máscaras que passam, nas serpentinas que cortam o ar, nos confetes a chover das sacadas, a golfar dos automóveis, nas mesmas luzes que iluminam a urbs... — carnaval, paixão de todos nós! 

Carnaval, frenesi tumultuário dos cariocas! Eu poderia dizer-te o carnaval de outras terras, momento de esquecimento ou de elegância excitada — o carnaval de Londres, o carnaval de Veneza, reminiscência do bom tempo em que Goldoni era sigisbéu, o carnaval de Nice com o cosmopolitismo regrando os seus ímpetos pelo horário da municipalidade, e até a porneia grosseira do carnaval de Munique e a alegria com pós de Lisboa. Mas tu não aceitas comparações, não aceitas conselhos. De ti só se pode falar como dos grandes acontecimentos históricos — porque tu és tu, só tu, incomparável e único! 

Carnaval, quatro dias de Dionísios na Guanabara! 

Carnaval do Rio, vendaval dos sentidos! — Antes de partires para a rua eu queria dizer porque te amo, porque te quero, porque te aplaudo. Tu nos reconcilias com os deuses, és a prova de uma cidade inteira, de um milhão de habitantes tomando do tirso enroscado de hera e estrugindo dos montes aos mares a bacanal maravilhosa, a fogueira que aplaca e melhora e dá coragem para passarmos o resto do ano resignados na hipocrisia e na mistificação. Tu és a única e possível e suficiente crise de igualdade das várias camadas da espécie em que todas as classes se confundem no mesmo riso, no mesmo desejo, e no mesmo ato, na mesma pândega. Tu és o apetite que se satisfaz, o prazer até a saciedade, o apogeu apocalíptico do bruto que vive escondido em cada um de nós, homens e mulheres. Tu és o espasmo da fera na civilização! 

Carnaval do Rio — único entusiasmo, única fé, único programa, único ideal de carioca! — Lá fora o som anunciador incorpóreo faz-te aos meus sentidos como um turbilhão de serpentes, de boas, de jiboias vibrando guizos, de tentações, pandeiradas de espasmos, epilepsias de bombos, desejos ásperos de cornetins, esfregações renitentes de xequerés. Não posso mais. Espera! Vou contigo. Carnaval carioca, fúria aplacadora — evoé! 

*Palavra de origem grega, que significa "cântico de vitória".  No original, por evidente erro tipográfico, consta o título "Poeau".

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