Fonte: João do Rio: crônica. Organização de Gabriela Beting, Carambaia, 2015, pp. 222-227. Publicada, originalmente, na Gazeta de Noticias de 23/11/ 1903.
Essa afirmação solene será para muita gente inacreditável. O Brasil lendo! Isso lá é possível, quando os seus escritores ainda o pintam de tacape e flecha e o Antoine carapeta a nossa desmoralização para meia dúzia de menos interessantes? Pois, senhores, não há dúvida. Os livreiros o dizem. O Brasil lê. Há alguns dias, sabendo como se sabe, a crise do livro não só na França, como na Itália, na Espanha e em outros países, tivemos a feliz ideia — uma ideia patriótica por estes tempos que correm! — de interrogar os nossos livreiros, os nossos alfarrabistas, de abrir uma devassa em regra pelas casas de livros, a saber se lemos mais ou se lemos menos. Lemos muito mais, apenas depois da república e principalmente depois do ministério Murtinho, do funding-loan e da melhora do câmbio! Nunca o dr. Joaquim Murtinho pensou que protegia a nossa educação no Ministério da Fazenda. E, entretanto, um fato hoje provado pela estatística e pela burra dos livreiros...
Começamos o nosso inquérito pelos alfarrabistas, as casas da rua de S. José, General Câmara e outras. Cada proprietário recebeu-nos a princípio vincando a face feliz de uma ruga convencional.
— Qual! As cousas vão mal!
— Mas o valor do livro aumentou.
— Muito.
— Que vendem mais?
— Livros escolares, manuais adotados nas escolas superiores.
— Mais do que no tempo da monarquia?
— Muito mais: aumenta de ano para ano.
— E os livros científicos?
Esses livros, como as brochuras francesas, estudos sociais, artigos de combate, volumes de crítica, têm grande procura. O romance e o verso não se vendem tanto. Depois do naturalismo, isto é, depois que Zola entrou a fazer os massudos volumes dos Quatro evangelhos e das Três cidades, e que a poesia começou a delirar com o esquisito Mallarmé, o povo teme os romancistas e poetas, deixa as pilhas dos livros de Zola, outrora colossalmente vendáveis, e só lê gente de nome reconhecido e firmado.
Em cada brochura os alfarrabistas ganham o duplo do que pagaram, às vezes mais, e como a base do seu negócio é o livro didático, esse comércio é um simples acréscimo. Um deles nos dá curiosos dados das nossas correntes espirituais. Na rua de S. José, o Brasil lê mais francês de ano para ano nas classes cultas, ama muito mais os romancistas antigos, o Camilo, o Alencar, o Macedo, ainda perde a cabeça com Castro Alves e Fagundes Varela e é cada vez mais católico e mais comtiano. Os livros espiritualistas modernos são procuradíssimos; a obra de Augusto Comte é das mais citadas, e a procura aos livros que perfazem a biblioteca positivista torna-se uma verdadeira hantise. Alguns já têm uma lista e a sabem de cor.
Vamos dos alfarrabistas aos livreiros de primeira ordem. Todos hoje têm instalações magníficas, vastos edifícios modernos e pomposos. A última casa a reformar-se foi a dos srs. Briguiet & C.
Entrar num desses vastos halls, cheios de movimento, com caixeiros a correr apressados, caixões de livros a abrirem-se, e uma pletora de vida evidente, para perguntar se o negócio rende — é quase ousadia. Perguntamos, entretanto. A casa Alves, num prédio magnífico, fornece livros didáticos em porções para os estados, para as escolas oficiais. A venda é magnífica, acrescida pela venda diária de obras adotadas pelas academias e de livros portugueses editados por Lello & Irmão, cujo direito de propriedade é seu. À nossa pergunta respondem:
— O Brasil estuda cada vez mais!
Estuda! Apesar dos exames escandalosos, da ignorância proclamada!...
É crível? Os livreiros, porém, examinam as contas e veem que as suas edições são muito maiores e muito mais contínuas que há dez anos.
A casa Briguiet é da mesma opinião. O seu comércio todo de livros estrangeiros aumentou este ano não só em literatura, como em obras científicas, estudos de engenharia, de direito, de filosofia.
— Não há público que mais acompanhe o movimento intelectual francês, e que assimile com tanta facilidade. Depois do sucesso de Annunzio, estabeleceu-se uma corrente pela literatura italiana. Hoje, a élite está a par do movimento literário italiano, lê os seus romances, os seus poetas e as suas revistas e a conhece melhor que Paris. No Laemmert, que tem duas filiais em São Paulo e Pernambuco, repete-se a agradável resposta. A procura pelo livro científico em francês, em alemão, em italiano é grande. Trata-se mesmo de literatura brasileira.
— Quando a imprensa fala, o livro vende-se; esgota-se uma edição de mil exemplares... A casa tem editado romances, contos, aceita-os mesmo, sem grande trabalho...
Ainda emocionados com a revelação, paramos na Garnier. Eram quatro horas da tarde e a essa hora, na livraria, há sempre a roda seleta dos espirituais já proclamados ou ainda por isso. Apesar do movimento, o amável Jacintho presta-nos a atenção, e é por ele que obtemos informações completas.
O Brasil lê como nunca leu. O interesse é antes de tudo geral pelas coisas atuais, políticas e palpitantes. A venda dos jornais e revistas nunca foi feita como de há dous anos para cá. É um paroxismo. As livrarias já não chegam. Há agências especiais. Se for a qualquer delas verá o lucro bárbaro. As revistas italianas, francesas, espanholas têm uma extração formidável. Isso bastaria para atestar que o interesse pela leitura centuplicou. A base, porém, é a venda do livro didático. Esta casa tem como lucro das edições de livros nacionais o livro didático.
Vende-se cada vez mais.
— E o livro estrangeiro?
A tendência é para os estudos sociais, para os estudos fisiológicos, para as monografias rápidas que instruem. Livros de idealização, romance ou poesia, só com a réclame estrangeira. O Brasil recebe a maioria desses romances, antes de eles aparecerem em Paris, mas naturalmente acompanha o gosto da Cidade Luz. É enorme a voracidade dos brasileiros para os livros que cheiram a carne, que contam nudezes de perversidades sexuais. O Willy, o Jean Lorrain, são dos mais lidos hoje. Para satisfazer a fome insaciável mandamos buscar o livro com fotografias, os álbuns, as literaturas mórbidas... Os escritores conhecidos continuam porém tendo grande venda, e manda-se buscar teatro, peças, críticas...
A impressão é de um povo que quer aprender e saber logo o que se passa hoje.
— E quanto aos nossos livros?
— Só duas edições esgotaram-se este ano. As Poesias de Olavo Bilac e a Canaã de Graça Aranha. Tudo o mais é uma dificuldade. Os escritores já vão se compenetrando que só mesmo uma livraria pode difundir sua obra e vendê-la nem que seja aos poucos. Um deles zangou-se há tempos, editou por conta própria. Três meses depois dizia-me que não pudera vender nem um exemplar. Nós mandamos para os estados...
O público prefere a literatura estrangeira, desconfia dos novos, só quer aceitar traduções. Os velhos, como os novos dizem, Aluísio e outros estão nas reedições. Em resumo: o Rio civiliza-se, é internacional, poliglota. O Brasil lê vinte vezes mais do que há dez anos.
Podemos ficar tranquilos pois! As livrarias levantam palácios cheios de papel, Garnier tem quarenta milhões e edita os nossos livros grátis, o público lê mais vinte vezes e interessa-se pelo que se passa neste mundo de Deus. Só os poetas podem dizer hoje, com verdade e mágoa no Brasil:
— Para que escrever? Ninguém lê...
O resto lê tanto que não tem tempo para mais nada.