Composição, Londrina-PR, 1959 circa. Foto de Haruo Ohara. Coleção Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Os tempos, claro, são outros, nem sempre melhores, a imprensa, também – e o fato é que, nostalgia à parte, nunca mais tivemos, nos domínios da crônica, uma fase de ouro como aquela que cintilou da metade dos anos 40 a meados dos 60, com brilho mais intenso na década de 50.
O leitor dispunha então de uma boa dúzia e meia de cronistas, vários deles entre os melhores que o gênero já nos proporcionou. Só na Manchete, revista semanal criada em 1952, havia quatro, e veja quem: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, além de Henrique Pongetti, que, sem ombrear com eles, nem por isso fazia feio. Também toda semana, Rachel de Queiroz acostumou muita gente a começar pela última página a leitura de O Cruzeiro, na época a maior revista brasileira. Nos jornais, espalhava-se o ouro em pó de Antônio Maria, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Stanislaw Ponte Preta, Luís Martins e, mais adiante, anos 60 adentro, José Carlos Oliveira, Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony. Por certo não escapou a você o fato de que, desse belo time, nada menos de sete craques podem ser lidos neste Portal da Crônica Brasileira. A eles viria acrescentar-se Otto Lara Resende, que, até então cronista ocasional, no seu último ano e meio de vida (1991-1992) se estabeleceu como cronista contumaz, e dos melhores, na Folha de S.Paulo, onde, com pique de moço, escrevia em ritmo quase diário.
Com a crônica vivendo momento sem igual, causa espanto o fato de que na quase totalidade dos colégios ela não entrava no cardápio de português e de literatura. Na “pequena antologia” que acompanha o Português no ginásio, por exemplo, de Raul Moreira Léllis, um dos manuais mais adotados no país, o que de mais recente havia eram sonetos de Guilherme de Almeida, um modernista aguado.
O panorama mudou rapidinho a partir de 1960, quando Fernando Sabino e Rubem Braga criaram a Editora do Autor, em sociedade com um advogado com bom faro financeiro, Walter Acosta. No final daquele ano, com um esquema esperto de marketing – nas noites de autógrafos, chegou-se a escalar “madrinhas”, uma para cada cronista, entre elas Tonia Carrero –, chegou às livrarias um pacote com quatro lançamentos, oferecidos também numa caixa, sedutora sugestão para o Natal. Além de uma antologia poética de Vinicius de Moraes, saíram três seletas imediatamente clássicas de crônicas: Ai de ti, Copacabana!, de Rubem Braga, O homem nu, de Fernando Sabino, e O cego de Ipanema, de Paulo Mendes Campos. Não tardou que professores de colégio apanhassem a deixa e cuidassem de rejuvenescer seu geriátrico menu literário, tornando-o infinitamente mais apetecível que a dieta vigente, à base de Coelho Neto e anacronismos quetais. Não há forçação de barra em afirmar que escritores hoje consagrados se nutriram também, gulosamente, dos cronistas que a Editora do Autor catou na imprensa para consolidar em livro.
Na esteira da fornada inicial, e desde o início num esquema de ruidosos lançamentos coletivos, não só no Rio como em vários cantos do Brasil, vieram coletâneas de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Vinicius de Moraes, Stanislaw Ponte Preta. A certa altura, a Editora do Autor teve a boa ideia de pôr em livro textos de sete cronistas que Paulo Autran desfiava, de domingo a domingo (tente imaginar algo assim nos dias de hoje) ao microfone da Rádio Ministério da Educação. Quadrante, que rendeu dois volumes, e que em outra editora teria seu título desastradamente trocado para Elenco de cronistas modernos, foi precursor da série Para gostar de ler, da editora Ática, que a partir dos anos 80 faria a festa e a cabeça literária de sucessivas gerações de jovens leitores e escritores.
Embora bem-sucedida, não durou muito a Editora do Autor, vendida em 1966 ao sócio Acosta. No ano seguinte, Braga e Sabino puseram para voar a Sabiá, outro sucesso que também não os reteve por muito tempo, passando às mãos da José Olympio em 1972. Nas duas empreitadas, a dupla se cansou da brincadeira quando, vitoriosa, ela se tornou negócio por demais absorvente para quem gostava mesmo é de escrever.
Vale a pena voltar aos começos da Editora do Autor, cujo surgimento se deu em circunstâncias curiosas. O pai da criança foi Fernando, revelou Paulo Mendes Campos numa reportagem com sabor de crônica, “Uma editora alegre”, em 1960. “Sabino, ainda tenro, acostumou-se a relacionar literatura e dinheiro, e jamais perdeu esse hábito salutar”, contou Paulo. “Seu amigo de tantos anos, sempre o vi preocupado em melhoria de pagamento, direitos autorais, e todos os pormenores que defendem praticamente o ofício de escrever.” O “hábito salutar” a que se refere teria brotado quando Fernando, aos 12 anos, criou a rotina de ganhar, quase todas as semanas, os 100 mil-réis que a revista Carioca pagava pela melhor crônica sobre assunto radiofônico.
Disposto a engordar os dez por cento devidos a um autor a cada livro vendido, Sabino já caraminholava tornar-se seu próprio editor quando, em 1960, Jean-Paul Sartre passou pelo Brasil, vindo de Cuba, onde a então recente revolução lhe inspirou uma série de artigos para o jornal France-Soir. Sabino e Braga farejaram best-seller, e trataram de precipitar o parto da editora. Por meio de apelos nos jornais, conseguiram juntar os 16 capítulos da reportagem, em seguida traduzidos num mutirão que mobilizou todo um time de amigos, de modo a que o lançamento de Furacão sobre Cuba pudesse acontecer com a presença do autor. Os dois cronistas, que naquele ano tinham visitado Havana, encorporaram o volume, de 222 páginas, com suas impressões de viagem: "Trata-se de uma revolução" (RB) e "A revolução dos jovens iluminados" (FS).
E assim, ao cabo de escassos sete dias de trabalho ensandecido, Jean-Paul Sartre pôde, em 17 de setembro, autografar nada menos de 800 exemplares, num shopping center na rua Siqueira Campos, em Copacabana, o qual, estando ainda em obras, contribuiu para reforçar o clima geral de improviso. Não sem um bocado de sufoco suplementar para Sabino, de seu natural já elétrico, pois na hora marcada para o início do fuzuê nem Sartre nem o Braga tinham dado as caras. Aflito, embrenhou-se pelo shopping até achar o sócio placidamente pendurado a um telefone. Seu relato da noitada, no Jornal do Brasil, chama-se “Editora” – texto indisponível aqui, infelizmente, em respeito à determinação do escritor, firmada em cartório, de que nada seu possa ser publicado se não estiver nos livros que deixou organizados. O mesmo se diga de “Furacão”, em que ele descreve a maratona de produzir o primeiro título da Editora do Autor.
Já o Velho Braga, em suas “Confissões de um jovem editor”, nos abre bastidores da aventura e revela que Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes, de olho em bons resultados comerciais, que de fato vieram, se dispuseram a bancar seus livros. Rubem fala do papo em que ele, na Bahia, à sombra de Jorge Amado, conseguiu de Sartre o sinal verde para montar um livro que ele próprio não havia programado. Conseguiu também o que não teria ousado pedir: generoso, o colega não pediu um tostão em troca de suas reportagens. No mesmo texto, para previnir decepções, Rubem orientou “jovens autores incompreendidos” a procurar editores mais endinheirados – “nós ainda não podemos”, avisou. Mas nem sempre foi assim que as coisas se passaram. Poucos meses depois, a Editora do Autor apostou nos originais de Redenção para Job, romance enviado de Pernambuco por um moleque de 17 anos, um tal de Aguinaldo Silva, sim, ele mesmo, futuro novelista do primeiro time da TV Globo.