15 fev 2021
Humberto Werneck
Difícil imaginar o que Rachel de Queiroz, falecida em 2003, escreveria sobre o Carnaval da Covid, sem blocos na rua e com sambódromos abertos apenas à vacinação. Difícil imaginar, também, que em algum momento de sua meninez, juventude ou idade madura a escritora cearense tenha sido foliona. Talvez sim, pois no ano de 1949 ela pingou um lamento, ou quase, na sua já então famosa última página da revista O Cruzeiro. A grande festa popular “morreu, se acabou”, registrou Rachel em “Carnaval”, reduzida que fora “a dois grupos bem distintos e algumas vezes adversos: a turma dos exibicionistas e a turma dos melancólicos espectadores”.
Sua colega Clarice Lispector fazia parte da segunda turma – pelo menos na decisiva...29 jan 2021
Humberto Werneck
Contra uma fartura de evidências, volta e meia aparece alguém dizendo que a crônica morreu. E nem é de hoje essa conversa. “A defunta, como vai?”, ironizou Otto Lara Resende há quase trinta anos – e foi mais fundo ainda, ressuscitando uma enquete realizada duas décadas antes sobre a suposta falecida. Ele próprio cronista de mão cheia (cabe aqui o empoeirado clichê), o escritor, mineiramente, houve por bem, houve por mal não meter a sua na cumbuca. Teria sido ótimo conhecer a sua avaliação, porém Otto limitou-se a sintetizar o que disseram, em 1972, alguns dos melhores cronistas então na ativa – Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade. Ah,...15 jan 2021
Humberto Werneck
Certamente não é por falta de assunto que um cronista toma às vezes como tema algum colega de ofício. Muitos o fizeram, não raro ainda em vida do personagem. Otto Lara Resende, por exemplo, escrevendo sobre Fernando Sabino, como adiante se verá. Também não é raro que o objeto da crônica seja alguém já falecido. Houve um momento, em 1950, em que Rachel de Queiroz, na sua famosa última página da revista O Cruzeiro, se ocupou de dois cronistas mortos, nosso Lima Barreto e o Machado de Assis, por ela reunidos em “Dois negros”. Não é difícil que tenha, com essa crônica, ateado discussões ao compará-los pelo ângulo da raça. Na opinião de Rachel, brandindo há 70 anos argumentos hoje mais que nunca em pauta, Machado...15 dez 2020
Humberto Werneck
Com exceção de Vinicius de Moraes, para ele “outro departamento”, Otto Lara Resende achava que Manuel Bandeira era “o mais musical” dos poetas brasileiros. Para prová-lo, sacava a lista dos compositores de quem o mestre se tornou parceiro, fosse com poesia catada em sua obra, fosse escrevendo versos para partituras deles. Artistas graúdos como Villa-Lobos, Jayme Ovalle, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Ari Barroso. Otto poderia ter acrescentado Tom Jobim, Gilberto Gil, Dorival Caymmi e Milton Nascimento, que musicaram Bandeira após a sua morte, e nem assim a lista estaria completa. Seu lado musical lhe parecia tão consistente que o cronista, em “Uma letra e suas voltas”, até se penitencia por haver acreditado ser dele...30 nov 2020
Humberto Werneck
Se você nunca leu José Carlos Oliveira, prepare-se para um doce problema: no mar de coisas boas que o cronista (além de romancista) nos deixou, e que por mais de vinte anos encantaram os leitores no Jornal do Brasil, por onde começar? Na dúvida, o melhor talvez seja aventurar-se, mordendo saborosas iscas verbais nas amostras a partir de agora disponíveis neste nosso Portal da Crônica Brasileira – amostras essas cuja quantidade, para o bem de todos, não cessará de aumentar, peneiradas nas mais de 3 mil crônicas que Carlinhos Oliveira, como era mais conhecido, escreveu em seus breves 51 anos de vida.
Qualquer que seja o ponto de largada, não haverá de escapar a você o cuidado literário que o cronista punha em seus escritos,...13 nov 2020
Humberto Werneck
Imbatível na crônica, Rubem Braga era ruim de voto. Não que fizesse más escolhas políticas. O problema era uma certa incapacidade de seus candidatos, pelo menos boa parte deles, de saírem vitoriosos nas urnas, mesmo quando contavam com a sua força. Nem por isso esmorecia. “Neste momento estou pensando em vários nomes de amigos que gostaria de sufragar”, escreveu em “Voto”, às vésperas das eleições legislativas de 1954, lamentando não poder cravar mais de um nome para cada cargo em disputa: “a amizade é longa e o voto é curto".
Muitos (e)leitores devem ter amado a crônica, na qual o Braga não hesitou em escancarar suas escolhas – mas não ao ponto, parece, de adotarem em massa as preferências daquele inesperado...30 out 2020
Humberto Werneck
Poeta e cronista inspirado – para desempoeirar um lugar-comum de comentaristas literários de outrora –, Carlos Drummond de Andrade foi também assunto, farto e diversificado, para muitos de seus colegas de ofício. De todos eles, Otto Lara Resende talvez tenha sido o que mais próximo esteve do poeta, que neste 31 de outubro, comemoremos, estaria completando 118 anos. Próximo o bastante para não titubear quando, chegada a hora de colorir um retrato seu, pintou também inesperada dúvida: qual era mesmo, gente, a cor dos olhos de Carlos Drummond de Andrade?
O poeta Abgar Renault, colado à sua vida desde a mocidade belo-horizontina, não hesitou em afirmar: eram verdes. Consultados, os amigos Yeda Braga Miranda e Moacir Werneck de Castro...16 out 2020
Humberto Werneck
Daqui para a frente, nesta era do e-mail e do WhatsApp, neste tempo de comunicações instantâneas também por escrito, não se sabe bem como será – mas entre os escribas de outras épocas, uns mais, outros menos, sempre teve raízes poderosas o hábito de escrever cartas, muitas das quais vieram a constituir parte relevante da obra de seus autores. Mário de Andrade é apenas o exemplo mais radical de missivista contumaz. Há muitos outros.
No nosso Portal, inclusive, abrigo de um escrevinhador de cartas cuja compulsão epistolar só se pode comparar à de Mário: Otto Lara Resende, de cuja fartíssima correspondência ativa, até agora, apenas uma primeira e suculenta amostra chegou às livrarias, nas mais de 400 páginas de O Rio é tão longe...30 set 2020
Humberto Werneck
Vários dos cronistas de nosso Portal fizeram da boa mesa uma de suas mais apetitosas musas, e não deixa de ser curioso o fato de que, entre eles, quem mais tangeu essa lira específica foi justamente um magro, o mineiro Paulo Mendes Campos. Nada indica que ele fosse parco em carnes porque jejuasse – ao contrário, basta ver o ardor de gourmet, eventualmente de gourmand, glutão em francês, com que Paulo proseou sobre comida (e, mais ainda, bebida). Se pilotava um fogão, não se sabe, mas dúvida não há de que no garfo & faca, além da escrita, ele era um craque. Quem mais, no afã de explicar a uma “gringa” – provavelmente a inglesa Joan, com quem se casou – o que vem a ser um bolinho de feijão, essa versão...11 set 2020
Humberto Werneck
Além de romancista graúdo, e sabe disso quem leu Triste fim de Policarpo Quaresma, ou Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto era um cronista dos bons – mais do que isso, era um cronista puro-sangue, desses que nos proporcionam a gratificante sensação de estarmos sentados a seu lado num meio-fio, ouvindo-o desenrolar o novelo de uma conversa boa. Aliás, tem tudo a ver a imagem do meio-fio, pois o Lima era um homem das ruas – coisa rara no universo literário de seu tempo, as duas primeiras décadas do século passado, quando escritor era quase sempre um homem de gabinete.
O cronista que agora chega ao nosso Portal tinha os olhos permanentemente postos em sua cidade, o Rio de Janeiro, com sua vida...31 ago 2020
Humberto Werneck
Quando menino, lá na sua Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, Rubem Braga não tinha grande apreço pela nossa Independência, por ter sido proclamada por um português. Nem pela instauração da República, porque lhe dava pena a figura do venerando imperador deposto. Digno de admiração, para ele, era o “conto de fadas” da Abolição da Escravatura, protagonizado por uma princesa, a Isabel, que na sua fantasia era “muito jovem, muito loura e muito linda”. Caiu das nuvens ao saber que a heroína não era nada disso, e jamais se conformou “com aquele seu retrato de matrona gorda”.
No final da adolescência, o Braga possivelmente se decepcionou, por mais de uma razão, quando, vitoriosa a Revolução de 30, Getúlio Vargas...17 ago 2020
Humberto Werneck
Por amor à arte ou pela necessidade de encher o espaço que lhe cabe no jornal ou na revista, ainda mais quando lhe falte assunto, volta e meia um cronista se põe a falar de cinema. Com maior ou menor conhecimento de causa, quase todos, no vasto time dos cultores desse gênero, viram chegar seu momento de crítico ou comentarista da arte cinematográfica. Houve mesmo quem fizesse – Antônio Maria, em "O último encontro" – da sala escura apenas cenário para o fecho de um caso de amor, The End não na tela, mas em duas poltronas na plateia.
Rubem Braga não se improvisava em crítico, mas certa vez, em 1953, recheou sua coluna com considerações sobre “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, diretor que ninguém haverá de confundir...31 jul 2020
Humberto Werneck
Quando se sentou para escrever Terra nova, Rachel de Queiroz gostaria de contar “uma história gentil”, sobre “uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo”. Logo, porém, precisou admitir que dali não sairiam “flores”, só “miséria”. Ainda assim, legou-nos uma história bonita, muito digna de ser lida.
Dos nossos cronistas, Rachel talvez seja, ao lado de Rubem Braga, quem mais escreveu sobre gente que trocou por outra a sua terra – não fosse ela mesma uma filha do Ceará que foi parar no Rio de Janeiro. Como acima ficou claro, era sensível ao drama dos desenraizados. A começar pelos africanos reduzidos no Brasil à condição de escravos. Não espanta que Rachel, em...16 jul 2020
Humberto Werneck
Estivessem eles ainda aqui, submetidos à pandemia que nos inferniza desde março, e é bem possível que os cronistas do nosso Portal se vissem hoje, como tantos de nós, impossibilitados de botar o pé na rua. Teriam, assim, o sofrimento adicional de uma rarefação de assuntos para seus escritos. Pois, como sabemos, é em geral lá fora, no mundo, e não entre quatro paredes, que os cultores desse gênero costumam garimpar inspiração. Na falta de poderem sair, nossos cronistas estariam condenados a se bastar com o que houvesse em casa – ainda que se tratasse, também na mesa de trabalho, de provisões congeladas: memórias, velhos temas, empoeirados personagens e acontecimentos.
Tentar imaginar o que eles haveriam de escrever nas atuais...30 jun 2020
Humberto Werneck
Vinicius de Moraes, sentenciou Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, não era um, era muitos – se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Nem por isso deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que Vinicius de Moraes deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta – que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em...15 jun 2020
Humberto Werneck
Certas crônicas, de tão irretocáveis, podem dar a impressão de que simplesmente fluíram para o papel ou tela, como se o autor, sem qualquer sofrimento, tivesse tido apenas o trabalho de transcrever o que lhe dava a ler um teleprompter da literatura. Desnecessário lembrar que só por milagre poderia ser assim. Não há escritor que não saiba que escrever costuma ser horrível, como disse a americana Dorothy Parker, craque do ofício, e que bom mesmo é “ter escrito”.
Paulo Mendes Campos sabia disso. “Assim como em um edifício não fica sinal do sofrimento dos que o levantaram, assim não vemos além das bibliotecas a raiva dos que as escreveram, os desânimos, os desesperos, o nojo de escrever”, observou ele numa crônica inédita... 1 jun 2020
Humberto Werneck
Temperamento, feitio, inclinação natural para a visada realista que marca sua prosa – o fato é que Rachel de Queiroz dizia não sentir saudade do que quer que fosse. Nada, nenhuma, reforçava ela. Talvez nem mesmo da glória precoce que experimentou aos 19 anos, com a publicação de seu primeiro livro, o romance O Quinze, ou do dia de 1977 em que se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. “Não tenho saudade de nada”, conta Rachel na crônica intitulada, exatamente, “Saudade”. “Nem da infância querida”, acrescenta, “nem mesmo de quem morreu”. Para surpresa de muitos, “nem sequer do primeiro dia em que nos vimos” – ela e o médico Oyama de Macedo, seu segundo marido e maior...15 mai 2020
Humberto Werneck
“O psicanalista é uma comadre bem paga”, cravou certa vez Otto Lara Resende, quem sabe para bulir com aquele que foi o seu maior amigo, o psicanalista (e bom poeta) Hélio Pellegrino. E não é impossível que Hélio estivesse na roda de conversa de que Otto fala em “Solução onírica”, na qual o assunto são os sonhos. E haja assunto! “Hoje todo mundo sabe o seu lance de psicologia”, escreve o cronista. “Freud e Jung dão pé para qualquer palpiteiro”. Em dado momento, alguém sugere que cada qual conte um sonho. O de Otto foi sobre um camarada de suas relações, que dera de lhe pedir, com implacável insistência, que encaminhasse um pedido dele ao presidente da Câmara dos Deputados – o Rio era ainda a capital federal,...30 abr 2020
Humberto Werneck
Otto Lara Resende gostava de dizer – e até deixou gravado, em 1981, num texto autobiográfico para o disco Os quatro mineiros – que nasceu num 1º de maio “não por ser Dia do Trabalho, mas por ser feriado”. Só gente mal informada poderia concluir daí que se tratava de alguém avesso ao batente – e para esses haveria um desmentido cravado em 1º de maio de 1991, data em que, chegando a nada juvenis 69 anos de idade, Otto iniciou na Folha de S.Paulo uma colaboração quase diária, só interrompida às vésperas da morte que o levou em 28 de dezembro de 1992. Ele quis que a crônica da estreia se chamasse “Bom dia para nascer” – texto cheio de diabruras bem suas, no qual, lá pelas tantas, se lê sobre outro...15 abr 2020
Humberto Werneck
Brasília, cuja inauguração completa 60 anos neste 21 de abril, foi assunto de cronistas muito antes de começar a sair do papel – mais que isto, muito antes de se saber em que ponto do Planalto Central, exatamente, ela seria construída. Para não descer fundo demais no tempo, fiquemos em 1948, ano em que chegou ao Congresso Nacional o relatório de um grupo de estudos encarregado de opinar sobre o melhor ponto daquela vastidão desértica para se erguer a nova Capital do Brasil – questão que os deputados e senadores só iriam decidir em 1953, quando, ao cabo de arrastada ruminação, a escolha recaiu na região conhecida como Sítio Castanho.
Mais quatro anos se passariam antes que as primeiras máquinas levantassem poeira num ermo...