Cinema Pathé, Avenida Rio Branco, Centro, Rio de Janeiro-RJ, 1919 circa. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Por amor à arte ou pela necessidade de encher o espaço que lhe cabe no jornal ou na revista, ainda mais quando lhe falte assunto, volta e meia um cronista se põe a falar de cinema. Com maior ou menor conhecimento de causa, quase todos, no vasto time dos cultores desse gênero, viram chegar seu momento de crítico ou comentarista da arte cinematográfica. Houve mesmo quem fizesse – Antônio Maria, em "O último encontro" – da sala escura apenas cenário para o fecho de um caso de amor, The End não na tela, mas em duas poltronas na plateia.
Rubem Braga não se improvisava em crítico, mas certa vez, em 1953, recheou sua coluna com considerações sobre “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, diretor que ninguém haverá de confundir com o escritor de mesmo nome, falecido três décadas antes. “Quem fala aqui é apenas um espectador”, vai avisando o cronista nas primeiras linhas de "Cangaceiro". Gostou do filme, mas antes de louvar-lhe as qualidades quis enumerar aquilo que lhe pareceu menos apetecível. O desempenho de Marisa Prado, por exemplo, “muito fria, muito parada”. Ou certo índio cuja fala lhe soou como texto de livro escolar de História do Brasil.
Sempre fino com as mulheres, o Braga provavelmente não se deu conta de que os diálogos de “O Cangaceiro” – aí incluídas as frases declamadas pelo índio – foram escritos... por sua amiga Rachel de Queiroz. A qual, aliás, ao contrário do colega, não se conformava em ser apenas espectadora. Em "Nas garras do vampiro", não escondeu a péssima impressão que lhe causou o filme homônimo, infestado de assustadoras raposas voadoras, como são conhecidos esses gigantescos morcegos que infestam algumas partes do mundo, como a Austrália – monstrengos que chegam a pesar 1,2 kg e cujas asas, quando abertas, podem medir, de ponta a ponta, nada menos que 1 metro e 70.
Rachel estranhou que o filme fosse ambientado no Ceilão, atual Sri Lanka, onde não haveria tal tipo de morcego. Mais grave ainda: raposas voadoras não mereceriam ser estigmatizadas como vampiros, pois, alimentando-se de frutas, nunca bebem sangue, muito menos sangue humano. Como se não bastasse, no Ceilão tampouco havia, como há no filme, mulheres de sarongue com as tetas ao vento. Dá para perceber que Rachel de Queiroz não apreciava, no cinema ao menos, trajes e atitudes na contramão dos bons costumes. Na crônica "Mocinho", em que expressa sua admiração por esse tipo de personagem, ela destaca, entre as virtudes que vê nele, “uma lirial castidade”, uma vez que mocinhos genuínos, mesmo quando apaixonados, jamais avançam nas prendas corporais da mocinha.
Vai por esse mesmo rumo o que Rachel descreve em "Cinema", sobre algo que ainda estava vivo em meados dos anos 1940, a “sessão colosso”, composta de sete ou mais filmes – ou “fitas”, como se usava dizer –, a serem vistos de enfiada. Conhecida sua desde a infância cearense, tal maratona cinematográfica era programa ainda na Ilha do Governador, no Rio, quando Rachel, já adulta, fez ali sua morada. Se os garotos na plateia, em ruidoso uníssono, contabilizavam os beijos na tela, os namorados eram em geral “respeitosos”, ou seja, “não se excediam em público”, tratando de amar “devagar, com compostura”.
A mesma Rachel dedicou toda uma crônica, "Cinema e alfabeto", ao jornal cinematográfico, complemento que durante décadas se exibia antes de um filme. Depois de profetizar que “a arte de ler e escrever” iria aos poucos desaparecer, “como obsoleta”, a cronista sacou uma proposta: “Em vez de fazer escolas, fazer cinemas”, pois não há “melhor veículo” do que um documentário “para a compreensão e entendimento entre os mais distantes povos do mundo”.
Paulo Mendes Campos não chegava a tanto em matéria de cinema. Na verdade, suas crônicas não permitem ver alguém muito ligado na chamada Sétima Arte. Ou será que ele apenas se divertia, fingindo-se blasé? Aos 13 anos, no internato do Colégio Dom Bosco, no interior de Minas, registrou em seu diário – do qual extrairá a crônica "O ano é de 1935... "– a chatice de um filme “muito pau”, ambientado em Bagdá e nos Pirineus, e, na sequência, um desenho do Mickey Mouse, que até teria graça não fosse mudo.
Em 1946, já vivendo no Rio, o cronista vai ver “Devoção” (cujo título se esquece de informar em "As Irmãs Brontë"), do alemão Curtis Bernhardt, e conclui que a obra não está à altura dos livros que as três personagens escreveram, clássicos como Jane Eyre e O morro dos ventos uivantes. Se o filme não chega a ser ridículo, fulmina, “cabe-lhe infelizmente a classificação de bisonho”. E conclui: “O celuloide americano não satisfaz o menos exigente dos admiradores daquelas moças.”
Seis anos mais tarde, em "O cineasta - Você gostou...", Paulo Mendes Campos pega pesado com ninguém menos que Alfred Hitchcock, cujo “Pacto sinistro” não lhe agradou nem um pouco. Poderia melhorar, se em dado momento “entrassem em cena os Irmãos Marx”, debocha o cronista, para em seguida admitir que em matéria de cinema ele é, “com raras exceções, apenas uma vítima”. Conta que sua opinião sobre “Pacto sinistro”, expressa em mesas de bar, lhe valeu puxão de orelhas de Vinicius de Moraes, para quem Hitchcock, com esse filme, conseguiu o mesmo que o grande poeta francês Stéphane Mallarmé em poesia.
Paulo levou cascudo, ainda, do crítico de cinema do jornal onde escrevia, o Diário Carioca: sem citar seu nome, Décio Vieira Ottoni o encaixou, depreciativamente, na categoria dos “eventuais cronistas cinematográficos”. Três dias mais tarde, Paulo Mendes Campos treplicou com "Pergunta: Se o filme...", comentário no qual macaqueou impiedosamente o jargão afetado e tortuoso de certos críticos de cinema. Também não citou nomes, mas pelo menos um destinatário deve ter sentido o golpe.