No cinema Majestic, lá na minha terra, tinha sessão colosso uma vez por semana com sete filmes, sem contar os trailers: nacional, desenho, jornal, comédia, complemento musical e duas fitas de metragem grande que em linguagem de exibidor se chamam “os dramas”. Mas aqui na ilha tem sessão colosso todo dia útil ou feriado ― e às vezes com mais de sete fitas. A gente entrando para a matinê à uma e meia só sai quando é noite fechada; ou se entra na sessão noturna que começa às seis e meia, quando de novo enfrenta o ar frio da praça Djalma Dutra, os galos já estão amiudando e a última barca há muito que chegou no Rio.
Além dos sete filmes temos o espetáculo da plateia, tão divertido que parece que o cinema não é na tela, é no salão. Ali, como no boteco vascaíno, entra homem e entra menino, entra velho, entra mulher. Entra criança de peito, que aliás são as melhores, pois a mãe, para ver a fita sossegada, desabotoa o vestido assim que faz escuro ― ou mesmo antes e o garoto mama a sessão inteira; e quando não mama dorme, pois que sempre no gostoso, no aconchego do colo, não tem o que reclamar. Crianças danadas para incomodar são as de entre um ano a cinco, que se chateiam logo no nacional e pegam choramingando: “Mamãe quero ir para casa... quero dormir na minha cama...” Outro dia tinha um, sentado perto de mim, que juntava as mãozinhas pateticamente e gemia: “Eu já não disse que tenho medo de cinema”! E a mãe lhe dava um beliscão: “Cala a boca, bobo, olha a fita”. O pequeno, entretanto ― evidentemente falando com a verdade de Deus na boca, insistia: “Mas eu já não lhe disse? Não disse? Eu toda a vida tive medo de cinema”! Razão tinha ele, coitadinho. Nessa noite passaram, com detalhes medonhos, todos os mortos vivos de Dachau, em procissão. Mas no dia em que apareceu o enforcamento de um criminoso de guerra, numa cena tão realista que até se ouviu o estalar da corda quando o peso do condenado a esticou, a criançada em massa aplaudiu, entusiasmada, aos urros. Reação de menino é sempre imprevisível.
Garotos maiores, de cinco anos para cima, embora incomodem menos, ainda amolam bastante. Gostam de estar mudando de lugar, passar de uma fila para outra, dar pontapé na cadeira de defronte; tem alguns que fazem combinação e, num determinado momento, certo como piscar de farol, soltam um uivo inarticulado, misto de Tarzan e Lobisomem. E como eu, certa vez, timidamente reclamasse de um deles contra o berro horrendo, ele me retrucou muito sério: “Moça, quem não quer ouvir Tarzan não vem no cinema. Se na tela pode fazer porque é que eu não posso”? Garoto saliente dos diabos.
Namorado dá muito, mas respeitoso. De modo geral os namorados cá da ilha não se excedem em público. Amam devagar, com compostura; talvez achem que aqui o céu é perto e não adianta agonia. Ou talvez porque ninguém ligue a eles e nessas beiras de praia haja muito escuro, muito esquisito, onde podem desabafar quando o coração desadora. Noto, entretanto, que os namorados do Rio, por exemplo, podem ser escandalosos, mas por isso mesmo são calados. Os daqui ficam só de mãos dadas, feito uns santos, mas escolhem o cinema para liquidar ciúmes, ajustar contas, romper e reatar de novo. Aliás, de modo geral, este cinema da ilha (não me refiro ao outro, o grã-fino), não é apenas um cinema em si e ninguém o procura propriamente para ver a fita. É um local de reunião, de palestra, de encontro de ausentes; fuma-se à vontade, come-se amendoim, coco com rapadura, maçã, pera e pêssego e é muito chique em certos grupos de moleques atirar para cima as cascas de banana ouro, que voltam revoluteando como falenas. É o lugar onde os meninos por demais fiscalizados em casa praticam no seu cigarro e até no seu charuto. Dá gosto ver a gravidade com que eles pedem fogo ao espectador vizinho. Incidentemente, porque já se está ali, vê-se a fita; o bonde, contudo, é muito mais importante do que o filme e acontece muito camarada entrar do começo para o meio de uma fita, sair do meio para o fim da outra, sem se importar com o início da primeira nem com o desenlace da segunda. Interessa-se apenas pelo letreiro de luz vermelha BONDE, que se acende a determinados momentos ao lado da tela. Às vezes o drama está no seu clímax e a mocinha vai dizer ao detetive o segredo mortal que gerou toda a complicação, quando se dá uma debandada coletiva da assistência, como se o segredo da moça fosse por demais horrível de se conhecer. Da primeira vez fiquei admirada e não entendi. Até assustei. O pessoal se despedindo, saindo rápido, não me deixava ver o que na tela se passava. Com o tempo, compreendi. Não era a tela: era o anúncio do bonde que se acendera, sem ligar ao clímax. E todos saíram achando a fita ótima.
Como dois terços da plateia são compostos de pessoas de poucas letras, os letrados presentes costumam declamar as legendas em voz alta, em auxílio do vizinho. Por isso, de certo modo o cinema recorda também escola dos tempos de dantes. No dia em que levou o “sinal da cruz”, com o pessoal murmurando as deixas piedosas dos cristãos, quase chorei de saudade da aula de catecismo da escola de Dona Maria José, no Alagadiço.
Quem entra no escuro acende um fósforo ou faz um facho do programa e procura lugar por seus próprios meios.
Guarda tem, mas são homens de boa paz que não deixam haver morte, nem roubo, nem espancamento dentro do recinto, mas também não vão ligar a tolices, como seja fumante dentro do salão; às vezes admoestam algum rapazinho mais saliente que diga falta de respeito na frente das famílias. E para fazer justiça, as faltas de respeito são poucas. Nos metros da cidade os moços ricos dizem muito mais indecência. Porque aqui na ilha os próprios espectadores fazem o policiamento e não aguentam nenhum atrevido sair com piada imoral na cara da sua esposa ou da sua pequena.
Um dos costumes mais característicos da gurizada é contar o escore ― representado na fita pelos beijos que a mocinha dá ou leva do mocinho. E ficam aos uivos — dois a um, dois a zero, às vezes se engalfinham, discutindo a contagem. Outro dia houve um impasse. A moça já estava oito a cinco com o galã, que era fuzileiro naval; de repente atracou-se com um paisano numa esquina. A garotada rompeu no berreiro habitual, “nove a cinco”!
Mas aí um maiorzinho ergueu-se, tocou um apito, calou os outros:
― Gol anulado! Gol anulado! Este foi foul!