Desde o trailer fiquei de olho na fita, ansiosa para ver. Chamava-se assim mesmo: Nas garras do vampiro, e não era Conde Drácula, Bela Lugosi ou Boris Karloff — era fita natural, apanhada na ilha de Ceilão, nas selvas de Ceilão, com os bichos e os homens de Ceilão — tudo autêntico, indiscutível, colhido na árvore. Os vampiros do papel título eram vampiros propriamente ditos — exibiam-se nos cartazes da entrada do cinema: morcegões horrendos que, segundo informavam os letreiros explicativos (os próprios letreiros em inglês) chupam o sangue de todo ser vivo que lhes cai nas garras, devoram o que lhes fique ao alcance; quando uma aldeia é ameaçada pela invasão dessas feras volantes e tão medonhas, o único remédio que têm os seus habitantes é mudar-se — homens, mulheres, velhos e crianças, gado, capoeira e xerimbabos.

E a fita confirmou os anúncios do trailer. Estava a aldeia no seu viver de todo o dia, os homens com os búfalos na canga, arando os arrozais, as moças com um sarongue que ia só da cintura para baixo, cozinhando, fiando e tecendo, as velhas pitando, a criançada reinando pelos terreiros, junto com os macacos mansos. Mas eis que de repente aparece o monstro — por nome “raposa-voadora”: vêm em bandos de milhares e durante o dia penduram-se às árvores como frutos moles; e em tal número são eles que as árvores onde pousam ficam negras. Fotografam-nos em close-up, em todo o seu horror arreganhando os dentes, arregalando os olhos brancos, adejando lentamente com as asas viscosas. E pior que tudo, aparece o flagrante de um deles, grande, nojento, amarrotado, atacando e matando um pavão real, que segundos antes abria a cauda numa clareira, em plena glória.

Na aldeia, mal se ouviu o grito de alarma, a fuga se precipita. Parece até que já tem os carros prontos para essa emergência — espécie de carroções muito semelhantes às caravan dos pioneiros americanos, apenas com a diferença do que são todos armados em esteiras de palha. Temerosos do morcego, abandonam em massa a casa, as plantações, o santuário dos deuses. E rumam precipitadamente para muito longe, para as serras, onde há todas as asperezas da selva bruta — mas não há vampiros.

É de arrepiar, não é? E pensar que aquilo tudo foi fotografado no local, sem invenção nem fantasia... que tudo aquilo é verdade.

Mas como dizia Pilatos — onde é que está a verdade? Porque mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo.

E aconteceu que estava no cinema, sentado junto de nós, um homem que já morou em Ceilão. Parece estranho, porém é verdade. A gente não espera por essa, razão por que os mentirosos se descuidam: foi-se o tempo em que só Marco Polo estivera em Catai. Hoje há sempre uma pessoa que já esteve em Ceilão, em Bali ou nos contrafortes do Himalaia. E aquele homem que estivera em Ceilão acorrera ao cinema justamente interessado em rever paisagens daquela ilha, que chamam a Pérola na orelha da Índia, onde se demorara e fora feliz. E agora, tremendo de cólera, teria agredido o diretor infiel se o encontrasse, teria tirado o sapato do pé e apedrejado com ele a tela mentirosa, se não houvesse um guarda perto.

Porque a tal fita, dita natural, era toda uma só mentira. O homem que esteve em Ceilão disse e provou. Provou com dicionários, com álbuns, com livros de história natural. O tal vampiro inegavelmente feio e sujo é, entretanto, frugívoro! Os zoólogos mais eminentes, que o estudaram no seu habitat, tiveram-no cativo em casa e lhe anotaram a dieta — Tennent, Pollen, Brehm, o grande Haeckel, afirmam que a raposa-voadora jamais atacaria uma galinha, quanto mais um pavão, e pior ainda um homem feito à imagem de Deus! E não por falta de dente ou garra, mas por uma questão de gosto e de princípio, porque é um vegetariano convicto incapaz de comer sequer uma mosca. Quando se entrega a uma extravagância devora botões de flores, segundo Brehm; ou rouba o vinho de palmeira dos indígenas e fica tão embriagado que mal podem chegar à árvore onde mora. São, pois, morcegos ferdinandos, são mesmo morcegos bêbedos, mas nunca vampiros, bebedores de sangue.

E mentira também eram as moças de sarongue, que nem são de Ceilão nem usam sarongue. Mentira os leopardos de dente de sabre, que nem existem, senão nos romances de quadrinhos. Mentira os elefantes de orelha grande, que não são da Ásia, mas da África, ou mais propriamente de alguma ménagerie de Los Angeles. Mentira o terror da gente da aldeia, mentira o êxodo, mentira os macacos, mentira tudo, só havia ali mentira.

Acho que isso não é direito. A ninguém, nem mesmo a um diretor de Hollywood devia ser permitido enganar a boa fé do povo com tal impudência. Afinal a fita foi censurada e aprovada. E quem procura ver um filme natural quer se documentar, aprender. Como, pois, deixar mentir impunemente no que devia ser um documentário de confiança? Além disso, Ceilão deve ser realmente bela, singular, rica de paisagens estranhas e de homens diferentes. Para que, portanto, inventar, usar os truques fáceis de um terrorismo barato?

Por isso mesmo, quando aparecem verdades importantes na tela, como na fita das atrocidades nazistas, tanta gente duvidava e dizia que era truque. A culpa é deles mesmos, os mentirosos, não do ceticismo das gentes.

*

E pior de tudo, essa história dos pretendidos vampiros de Ceilão ainda encerra um desaforo, porque nos rouba uma exclusividade: em todo o globo terrestre, dizem os livros, a única região onde existem em verdade os morcegos que chupam sangue humano é a América do Sul — e principalmente o Brasil. E até dessa glória os ladrões nos querem frustrar!

rachel-de-queiroz
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