Fonte: Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2002, pp. 91-93. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 11/12/1959.
Ele, um velho, tanto quanto Spencer Tracy. Ela, uma mocinha. Apresentados os personagens e verificada a desigualdade da luta, devo dizer que o velho está sentado à minha frente, tragando o seu cigarro forte, nos entregoles de uma bebida de álcool. Se está triste, não sei – deve estar. Mas sua velhice é tão anterior e mais forte, que lhe impossibilita qualquer revelação de estado d'alma. Mas deve estar triste, sim, embora comedidamente triste, porque as pessoas de sua idade têm obrigação de saber que a dor deve ser sofrida em silêncio, uma vez que todas as queixas e lamúrias são ridículas. E mais: que o Homem é só, desde o momento em que lhe cortam o umbigo e anunciam à parturiente (como se isto fosse uma boa notícia): "É homem!".
Na história que conta, a mocinha o procurou, fez e aconteceu. Chegou a convencê-lo de que o amava sobre todas as coisas, inclusive Deus (desculpe, Deus, eu sei que você não é coisa), e que estava disposta a fazer e acontecer, muito mais ainda. Passados os primeiros dias da paz perfeita, passou (a mocinha) a trazer-lhe as primeiras notícias das reações de família, os temores da mãe, as iras do pai e a intromissão das tias, que, como todas as tias, adoram falar, embora, no fundo, como todas as tias, pouco estejam ligando para a sorte dos sobrinhos. Foi aí que ele começou a amá-la. Um amor de dentro para fora que, além de sentimentos, tinha mãos e dentes. Mas, daí por diante, ela começou a retrair-se, até que, hoje, marcou o último encontro.
Tinha que ser em local onde não fossem vistos juntos e, tanto quanto possível, separados também. A sala grande de um cinema, em sessão quase vazia. Os dois de óculos escuros. Ele chegaria primeiro e ela, algum tempo depois. Ela planejava e dirigia a Operação. Ele cumpria, apenas. Sentaram-se, afinal, e deram-se as mãos. Da fita, não viram nada ou ele viu, de vez em quando, Myrna Loy, que não via há cem anos. Estava caindo aos pedaços. Sobre Myrna Loy fez ela a pergunta de uma curiosidade perdoabilíssima a todas as pessoas da Geração-Ivo Pitanguy: "Ela operou o nariz, foi?" Ele explicou que não, que o grande "charme" de Myrna Loy era sempre a ponta do nariz, onde Clark Gable, Gary Cooper e Robert Montgomery faziam gracinhas do tipo bilubilu, nas cenas de amor do cinema antigo. Então, começaram a tratar do seu caso. Ela é que falava:
− Não, não pode ser. Você pertence a um mundo e eu a outro. Para nós nos encontrarmos é preciso que haja outro mundo. Onde?
− Alagarça − respondeu o velho, num momento engraçado de seu desapontamento. E falaram durante toda a sessão, ela mais que ele, argumentando, e ele, a não ser quando sugeria o tal terceiro mundo, concordando. Cinco minutos antes da fita acabar, segundo o plano adrede traçado, ela saiu e ele ficou. Tudo na escuridão, para que não fossem vistos juntos e, se possível, separados.
Agora, eis o velho à minha frente, numa visita que intitula de solidariedade pelos meus últimos dissabores. Faz-me rir sua seriedade. O seu ar espectral. Sua imagem parece resultar de uma transformação qualquer da física, que seria, no caso, a própria decomposição da luz, que gera os espectros. Tudo isso (talvez, não seja fácil explicar) sem aparentar tristeza e sim velhice. Quem mandou se meter a cavalo-do-cão? Agora, aguenta. Então, não viu que a mocinha estava querendo fazer uma história? E começou a fazer. Escolheu você para um dos papéis principais. O outro seria o dela. Fez o começo, o meio e, depois, precisou do fim. Tinha pressa. Não havendo nada de melhor, escolheu a tal sala de cinema e comandou todos aqueles cuidados necessários a que ninguém os visse. O diálogo final seria aquele mesmo dos dois pertencerem a mundos diferentes e ser preciso encontrar o terceiro mundo. Depois de você ter sugerido "Alagarça", ela ainda pôde escrever umas dez ou 15 linhas conclusivas, sobre a chuva morna que caiu de repente, na qual ela se teria deixado molhar e, nisso, lembrar, em parte, Bárbara, personagem de Prévert: "Cette pluie sage et heureuse sur ton visage"... mas o visage de Bárbara era heureux! Não faz mal: à falta de outro na lembrança, serve Bárbara, "epanouie, ravie, ruisselante, sous la pluie". O que importa é a chuva de Brest como imagem. A personagem, desde que os cabelos lhe escorram molhados pelo rosto, pode ser triste, trôpega, hesitante, como fica bem a todos os personagens, depois do último encontro.
O homem velho começou a rir. De si mesmo como sempre gostou de rir. Os pequenos sonhos que ardiam em seus olhos eram comoventes.