Doce lar, ou nem tanto

Edifício Verde Mar, Santos-SP, 1958. Foto de Hans Günter Flieg/ Acervo Instituto Moreira Salles

Estivessem eles ainda aqui, submetidos à pandemia que nos inferniza desde março, e é bem possível que os cronistas do nosso Portal se vissem hoje, como tantos de nós, impossibilitados de botar o pé na rua. Teriam, assim, o sofrimento adicional de uma rarefação de assuntos para seus escritos. Pois, como sabemos, é em geral lá fora, no mundo, e não entre quatro paredes, que os cultores desse gênero costumam garimpar inspiração. Na falta de poderem sair, nossos cronistas estariam condenados a se bastar com o que houvesse em casa – ainda que se tratasse, também na mesa de trabalho, de provisões congeladas: memórias, velhos temas, empoeirados personagens e acontecimentos.

Tentar imaginar o que eles haveriam de escrever nas atuais circunstâncias, cada qual confinado no seu canto, até seria um exercício estimulante – fica a sugestão –, mas não neste Portal, suficientemente rico em crônicas cujo tema é a casa.

Quem mais produziu nessa picada foi Rubem Braga, que em “O adeus” não se mostra nem um pouco interessado no que se passa lá fora, ele e sua companheira de deleitosa reclusão, a ponto de por muitos dias ignorarem telefone e campainha. Ele sente, dentro de si, “uma saturação boa” de felicidade, comparável a “um veneno que tonteia”. Que destino terá a lua de mel dos dois amantes? Não, aqui não haverá spoiler. Digamos apenas que, à semelhança do que se passou em outro paraíso, o de Adão e Eva, naquele apartamento, sem maquiavelismos de serpente, sobreveio a certa altura fruta ainda mais suculenta que a fatal maçã.

Também em “A casa”, o Velho Braga deixa claro que para ele o mundo exterior pode às vezes não ter a menor importância. Pois casa, acredita ele, é um mundo à parte, “lugar de andar nu de corpo e alma”, “sítio para falar sozinho”, para “bradar, sem medo nem vergonha, o nome de sua amada”. E tudo, ali, deve ser radicalmente vivido como “preparação para o segredo maior do túmulo”.

Na vida real, nosso maior cronista pode ter encontrado o que buscava ao se instalar, em meados dos anos 60, naquele que seria seu derradeiro pouso, a legendária cobertura da rua Barão da Torre, em Ipanema – em cuja entrada, não por acaso, mandou afixar um jubiloso anúncio: “Aqui vive um solteiro feliz”. Reforçaria em outra ocasião: “Vivo aqui sozinho. Eu e Deus. Comprei o apartamento, pago o condomínio e Deus não deixa o edifício cair”.

A casa seria assunto de Rubem Braga para um punhado de outras crônicas, entre elas “Quarto de moça”, na qual registra, entre lembranças doces, a imagem que lhe ficou de um corpo nu de moça refletido num espelho. Reprisaria o título “Casa” para falar também de seis mulheres “suspensas na indolência de uma tarde de domingo”. O “transe melancólico” que foi para ele alugar uma residência mobiliada em Santiago do Chile, nos anos 50, rendeu, cheia de meios-tons, “O inventário”. Em “Receita de casa”, o Braga é taxativo: para o seu gosto, uma residência não pode dispensar “um bom porão” que funcione como “cemitério das coisas”, no qual “amontoar móveis antigos, quebrados, objetos desprezados e baús esquecidos”.

Como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos também acumulou extenso currículo imobiliário. A partir do momento em que se mudou para o Rio, em agosto de 1945, o poeta e cronista mineiro, então com 23 anos, saltou de endereço em endereço até que as finanças lhe permitissem quietar o facho – trajetória que resumiria, ainda incompleta, em “Morei primeiro, desde que...

Recém-chegado de Minas, Paulo começou por uma pensão decadente com pretensiosa denominação afrancesada, o Palacete Mon Rêve, no Leme, onde por um breve tempo dividiu quarto com a mais bela das hóspedes, separados, porém, por um tabique. Essa coabitação será deliciosamente registrada em “Casa de pensão”, crônica que chegaria a livro – Homenzinho na ventania, de 1962 – com o título “Palacete Mon Rêve”. O mesmo texto conta em detalhes a noite em que Paulo, alertado por gritos vindos de um quarto próximo, subiu no parapeito da janela e presenciou uma briga de amantes, pontuada por gritos, tabefes e choro, e arrematada com desconcertante happy end.

Naqueles seus primeiros anos no Rio, ele assistiu contristado à demolição de uma bela casa antiga, numa ruazinha de Copacabana onde então morava, e, na crônica “Destruindo casas”, se pôs a imaginar uns restos da mansão sendo reaproveitados em cantos vários da cidade. Imaginou também que do 12º andar do prédio a ser construído no lugar da casa haveria de despencar um dia “uma senhorita de rara beleza”. O espetáculo da demolição lhe devolveu lembrança de uma revisita que fez, já morador no Rio, à casa onde vivera por 15 anos, em Belo Horizonte, e que passava então por desfiguradora reforma. “Já estava em adiantado estado de decomposição”, descreve ele. “Não era a minha casa. Era um fantasma.”

Rachel de Queiroz viveu experiência semelhante quando, no seu Ceará, depois de largo tempo, voltou à casa onde morara até os 8 anos, e que se foi na enxurrada econômica de uma grande seca, a de 1919. Residência modesta, porém ampla, descreve ela em “Minha casa, meu lar”. E eis que agora já não é a mesma: “pintada, duplicada, triplicada”, acha-se convertida “numa casa de saúde para doentes mentais”.

Nada, porém, que derrube o ânimo da antiga moradora. Pouco antes dessa crônica, ela escrevera “Chegar em casa”, na qual repassa as impressões de sua volta a outra antiga residência da família. “Depois de anos e anos de ausência intermitente, a sensação de recuperar o que era nosso e largamos – a casa, dantes casa nova, agora casa velha”. A ela carecemos nos habituar, recomenda, “como se se tratasse de chegada em casa nova e desconhecida”.

Menos sentencioso é Antônio Maria, que em “Segredo do apartamento 912” tem algo de paternal para com a moça que o procura em casa, e que ele acolhe sob suas asas, lhe prepara uma sopa, faz carícias, e, por fim, solicitado, a ela se aconchega entre os lençóis. Maria mais sugere do que conta: “Naquele momento, nada na vida era verdade, além do abraço, além do cheiro dos cabelos, além da canção” que vem do toca-discos. “Há um grande segredo no apartamento 912”, ele concede. Mas “não adianta contar depois daí, porque, mesmo sabendo, mesmo entendendo, ninguém dirá que é verdade.”

Na pungente, enigmática “Do diário (10-10-1964)”, também mais sugestiva que explícita, escrita a menos de uma semana do infarto que deu cabo dele numa porta de boate, Antônio Maria vê a chuva que cai sobre o Rio, e que nele acende lembranças de uma casa que viu ser amorosamente construída a partir do zero. Lembrança que puxa outra, poeticamente descosturada, de uma viagem, em companhia do pintor Cícero Dias, a Anvers-sur-l’Oise, cidadezinha francesa onde morreu Van Gogh. De volta a Paris, espera por ele, na recepção do hotel, um telegrama de amor – amor, reconhece, em tudo semelhante àquele sob cujo signo, desde o nada, se fizera a casa.