A casa era modesta, mas ampla, quartos largos, caiados, chão de ladrilho, varandas com trepadeiras, cozinha com fogão de ferro. Representava com exatidão o que naquele tempo se chamava uma chácara. No quintal enorme o partido de bananeiras, debaixo das quais era perigoso passar correndo, por causa das casas de maribondos pregadas às folhas baixas. O cata-vento velho gemia puxando a bomba, e para nós era prodígio de audácia, de engenharia, de altitude ― era a nossa torre Eiffel. Ao lado do cata-vento o tanque que era a piscina, com água que nos dava na cintura, e que a mim me valeu três lambadas de cipó de pitangueira, por causa de banho escondido na água morna da tarde. Do lado direito, a horta de minha avó; à esquerda as goiabeiras; e por todos os lados as mangueiras, os cajueiros, os pés de sapoti ― plantados na maioria pelas mãos de minha mãe. À frente a rua larguíssima, cujo nome para nós era um mistério, pois tanto se chamava Alagadiço como Avenida Bezerra de Menezes; toda de areia frouxa, cortada no meio pela faixa de calçamento do trilho do bonde, estreita e sinuosa como uma espinha de cobra. Do lado oposto, a escola de Dona Maria José, a bodega do seu Siqueira; e à mão direita, passadas algumas casas, o chalé duplo da nossa amiga Dondonzinha. Dados todos estes detalhes, está provado que me recordo bem, embora tenha deixado aquela casa aos oito anos de idade.

Sim, foi ela vendida depois da seca de dezenove, ano desgraçado de prejuízos e de aperto. Todo dinheiro que se conseguia apurar era para comprar gado outra vez, tornar a encher os currais. Que só mesmo a ambição pelo gado poderia obrigar a gente a se desfazer daquele pedaço de chão que fora nosso durante tantos anos, onde nasceram duas das crianças; nem mesmo nos tempos difíceis da emigração para o Rio e o Pará se imolara a casa. E agora ia ela se desmanchar em novilhas e garrotes...

Isso pensavam com tristeza os mais velhos; eu, de mim, achava formidável vender a casa, mudar de terra outra vez, chegar a novos lugares. E comunicava a venda, o preço e o projetado destino do dinheiro aos garotos vizinhos, os Piccini, explicava que iríamos de muda para a serra de Baturité, que papai pretendia abrir um colégio no Guaramiranga...

Passou-se o tempo, passou-se a serra, não houve o colégio. Fomos para o sertão, tive que estudar, saí professora, depois literata.... Perdi a casa de vista. Vez por outra, alguém me contava reformas, cortes no terreno, mudanças.

Afinal, passados vinte e sete anos, lá estive outra vez. Logo reconheci a rua, que pouco mudou. As mangueiras ficaram enormes. Mas, na casa, bem que me diziam que houvera mudanças. Além de pintada, ampliada, duplicada ou triplicada, não se pode mais dizer que ainda seja uma residência, no sentido exato do termo. Lá moram pessoas, contudo. Muito mais pessoas, aliás, do que moravam no nosso tempo ― moças, rapazes, senhoras e cavalheiros. Porém cada uma com a sua origem, o seu tipo, o seu sobrenome diverso. Curioso, entretanto, é que apesar dessa diversidade, têm todas uma espécie de denominador comum, uma qualidade de semelhança inconfundível ― indiscutivelmente um ar de família. Bem, para que mais rodeios? A minha casa, o meu lar antigo, transformou-se numa casa de saúde para doentes de moléstias mentais.

Os quartos se multiplicaram, desdobraram-se as salas e as saletas. A enorme família heterogênea se espalha por toda parte, deitada nos quartos, sentada nas cadeiras de vime da sala de estar, nos bancos do jardim, meditando, conversando sozinha, murmurando cantigas.

Dita assim, a ideia daquela transformação dá um choque. Mas, engraçado, vista, não dá. É uma casa de saúde diferente de todas que já vi. Não tem mistérios, nem corredores, nem quartos fechados. Nem grades nas janelas, nem muros altos. As salas são claras e abertas, comunicando-se umas com as outras; os quartos não têm portas aferrolhadas. As criaturas que a habitam são talvez singulares ― algumas parecem tristes ou irritadiças, ― mas nenhuma tem aquele ar característico de ressentimento ou desespero; as roupas são compostas e limpas, os cabelos penteados. A maioria das mulheres tem as unhas tratadas e passam pó de arroz no rosto. Há uma até que toca piano ― e os demais escutam, polidamente, como num concerto. Não vejo enfermeiros forçudos, nem matronas musculosas, nem ninguém com o ar de quem está ali para enfrentar doidos. De vez em quando chega junto de nós alguma das freiras sorridentes de hábito branco, que mais parecem professoras de jardim de infância, muito jovens e tímidas.

No quarto onde nasceu meu irmão entra uma bonita moça loura de vestido estampado, cumprimenta a freira, deita-se na cama e põe com as suas próprias mãos, por sobre o cabelo bem penteado, uma espécie de diadema de couro ligado por uns fios a uma máquina que parece um rádio. Vão lhe fazer a diabólica terapêutica do choque elétrico, equivalente mais moderno do choque de cardiazol. Mas a manhã está tão linda, as trepadeiras entram pela janela rasgada, e a cena do choque, se é terrível, é pelo menos tão rápida que ninguém lhe põe reparo. Nem sequer fecharam a porta. E o doutor que me mostra as coisas novas da minha casa velha, sai comigo para a outra sala, deixando na cama a moça loura já adormecida, sossegadamente. Nem ele, nem o outro parecem doutores psiquiatras. Circulam por ali de terno claro, sem avental, sem termômetro ou qualquer espécie de utensilio da profissão. Andam pelos grupos, discretamente, interpelando um e outro, com um interesse afável. Parecem realmente simples visitas; e houve um momento em que um deles conversava tão sem superioridades, tão animado e compreensivo com a pianista de cabelo branco e fala rouca que ― Deus me perdoe ― não parecia doutor de modo nenhum, parecia também um hóspede da casa...

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