Periódico
Manchete, nº 419
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962, com o título Palacete Mon Rêve.

Quando vim de Minas para o Rio, fui morar, com o perdão do nome, no Palacete Mon Rêve, rua Gustavo Sampaio.

O antigo palacete transformara-se em pensão mofina, que eu, de certo em virtude da minha instabilidade financeira, achava dostoievskiana.

Dividia o meu quarto com a moça mais bonita da pensão. Mas me explico: um tabique de papelão separava nossos leitos, um tabique tão viciado ou complacente que não se podia virar demasiado na cama estreita sem invadir a outra. Diga-se logo que a minha vizinha, embora não revelasse qualquer preconceito quanto a essa relativa intimidade de nossos corpos, avolumando-se às vezes para cima de minha cama, jamais sugeriu, por olhar, palavra, gesto ou omissão, que essa intimidade transpusesse as muralhas de Jericó. E que almas negras não teríamos quase todos se o pecado verdadeiro não estivesse afinal na transposição da muralha! Mesmo de papelão flexível, uma parede é sempre uma parede, e preserva a nossa alma das delícias do inferno. Naquele caso, eu e a moça dormíamos castamente juntos, encarregando-se o tabique de zelar pelo advérbio de modo. Quando encontrava minha jovem e intocada companheira de quarto, na hora do café, seu ar era de um recato sublime, até mesmo de um sublime desinteresse por mim, e atrás de seus óculos escuros não era possível enxergar os seus olhos castanhos.

O prédio era em forma de T. Meu quarto, o último do corpo central da construção, ficava no ângulo reto da ala direita, onde se enfileiravam outros quartos, outros problemas, outras ansiedades.

Uma noite, quando me arrumava para dormir, ouvi no quarto ao lado, o primeiro da ala, uma voz de mulher-moça a clamar em tom indignado contra as constantes infidelidades de um homem. O ataque era de pessoa para pessoa, as acusações eram sérias e cheias de ameaças, mas não se fazia ouvir em resposta a voz do acusado.

A mulher dizia mais ou menos o seguinte:

– Tu pensas que eu ia ficar a vida toda feito uma idiota? Não vês que eu tinha percebido tudo há mais de seis meses? Você é um cafajeste completo, Joãozinho. Fiz tudo por você, fui fiel, passei humilhações, não adiantou nada. Ainda se você me enganasse de vez em quando, uma, duas, três, quatro vezes. Mas pensar que vou ficar calada só porque te amo, isso é que não, meu filho! E com uma ex-amiga minha! Isto é que não, meu bem! Para você estava tudo muito cômodo, não é? Naturalmente achaste que eu nunca teria o topete de dar o estrilo. Pois estás muito enganado. Uma mulher tem sempre a sua moral. Por mais baixa que seja. Até vagabunda do Mangue tem moral, fique você sabendo. Pois agora, vais ficar com tua sem-vergonha. Porque a mim você não verá nunca mais. Nunca mais! Chega! Oh, se chega!

Confesso que, eventualmente também meio cafajeste, subi ao peitoril da janela, ralado de curiosidade. E vi. Vi, em um quarto mais ou menos parecido com o meu, uma jovem de vinte e poucos anos, nada feia, maquilada com exagero, vestida com a chamada elegância duvidosa. Enquanto ela prosseguia na descompostura, retirava de um armário peças de roupa, para arrumá-las dentro de uma, duas, três malas de mão.

Na cama de casal jazia um homem maduro e grande. Bastava espiá-lo para verificar que a companheira dele estava certa: Joãozinho era um cafajeste da cabeça aos pés, cafajeste por nascimento, vocação, educação, determinação, filosofia, religião... Cabelos pretos demoradamente penteados, barba raspada com meticulosidade neurótica, bigodes a capricho, camisa creme de palha de seda, gravata prateada com uma pérola, calças escuras bem passadas, sapatos de duas cores. O todo da figura era robusto, no limite do obeso, a pele amarelo-esverdeada de quem nunca tomou sol.

Expressão não tinha. Fitava o teto, jogando para cima vastas baforadas de fumaça.

A mulher, imprecando, continuava a fazer as malas. Às vezes parava e dirigia-lhe um insulto mais duro, torneava um detalhe mais cru; mas o bruto acendia cigarro atrás de cigarro, imparcial e tranquilo.

Por fim, ela passou a chave nas três malas, ajeitou o cabelo, e foi postar-se diante dele em desafio:

– Adeus, Joãozinho.

Hierática, esperou uma resposta. Ele moveu a cabeça para o lado dela, com o olhar sempre neutro, virou as pernas em câmara lenta para fora da cama amassou o cigarro no cinzeiro, levantou-se, segurou-a pela gola do vestido; em silêncio, com uma serenidade profissional, sem desperdício de gestos, Joãozinho aplicou na amada uma dúzia de sonoros e ritmados tabefes, de dorso de mão na face direita e de mão espalmada na face esquerda.

A cena foi tão rápida, tão natural, tão técnica, que não tive tempo nem razão de espantar-me. A última tapona atirou-a, a soluçar com entusiasmo, sobre as malas. Ele voltou solenemente para a cama como um navio de guerra regressa ao ancoradouro depois das manobras. Acendeu outro cigarro, não disse palavra. Ela chorou, chorou ainda por bastante tempo, depois se ergueu, espasmódica, e foi derramar as derradeiras lágrimas sobre a camisa de palha de seda. Joãozinho a recebeu como um pai, sofrido e grave, acolhe uma filha transviada.

Minutos depois, a moça lavou os olhos e o rosto, abriu a primeira mala de onde começou a retirar as peças de roupa. Sumiu por um momento, reapareceu em uma camisola de seda, aninhou-se de novo nos peitos largos de Joãozinho, beijou-lhe a boca e a cara esverdeada muitas vezes. Ele sumiu também por um momento e reapareceu em um pijama horrendo. Deitou-se, ela se ajeitou ainda mais pedindo proteção.

– Joãozinho, ainda gostas um pouquinho de mim?

Joãozinho não respondeu. Sua mão de unhas esmaltadas procurou o comutador e a treva da noite penetrou dentro do quarto.

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