16 abr 1955

O inventário

Periódico
Correio da Manhã

Publicada, posteriormente, em Ai de ti, Copacabana, Editora do Autor, 1960.

Peço a um amigo que me ajude neste transe melancólico; aluguei uma casa mobiliada, e o velho casal de proprietários fez uma lista de seus trecos para eu conferir. A lista é minuciosa e, por isso, imensa; são mil grandes e pequenas coisas, duas marquesas, um quadro a carvão representando São Francisco de Assis (mas o desenho é ruim e o santo está gordo) uma horrível, incomodíssima cômoda de metal, dois choapinos, um espelho quadrado que agora será visitado pela minha cara e talvez por hábito, me faça meio parecido com esse velho chileno que sofre do coração.

Ah, sim, o piano. O velho quer levar o piano alemão; resisto; quero o piano; não sei tocar mas me agrada ter em casa um piano; não seria possível deixar o piano? Os velhos se consultam; sim, ficará o piano. Em compensação há essa absurda mesa de pôquer que eles insistem em deixar, enorme, horrível, esses quadros a óleo detestáveis que eles elogiam tanto e que eu meterei todos dentro de um armário, um tinteiro de cobre, uma estatueta japonesa, coisas antigas como um violetero onde jamais colocarei violetas, um licoreiro que nunca verá licor, um paragüero que sonha com os guarda-chuvas d'antanho, e essa feia mesita ratona, e essas coisas inúteis de metal e cristal, o relógio de cuco com o passarinho sempre cantando errado, pobre passarinho extraviado no tempo... A lista é terrivelmente minuciosa; eu terei de apresentar, ao sair desta casa, tantos ganchos de pendurar roupa e tantos cinzeirinhos de cobre; e já que insisti pelo piano, tenho de me conformar com a presença de um enorme e sinistro mueble musiquero onde se guardam velhos tangos e valsas.

Meu amigo confere as coisas, de lista na mão, e a velha vai repetindo os nomes e apontando os objetos, numa ladainha interminável; bocejo no meio de meu reino desordenado e precário; uma a uma terei de entregar um dia todas essas coisas que são desses velhos, e para eles são coisas de certo modo sagradas, com o longo contato de seus olhos e de suas mãos, coisas de suas vidas que incorporaram minutos e anos, lembranças, palavras, emoções. Bocejo, depois fumo; nego-me a examinar, como eles gostariam, o detalhe de cada coisa, e minha indiferença parece que vagamente os ofende. Creio que sentem no fundo da alma um ódio deste estranho que vai morar em sua casa, com suas coisas; sou um intruso, o mais antipático dos intrusos, o intruso que paga o direito de ser intruso. E então eles ficam mais minuciosos, gastam meia hora para acrescentar na lista algumas coisinhas sem importância que tinham omitido, são avaros do que me alugam...

Partem. Chego à janela, vejo-os que fecham com todo o cuidado o portão. E sorrio. Esses velhos são uns insensatos. Arrolaram centenas de cacarecos inúteis e se esqueceram do mais importante, do que me atraiu a esta casa, dos bens sem preço que um vândalo poderia destruir e entretanto não estão no inventário; daqueles bens que, se sumissem, fariam esses dois velhos desfalecer de espanto e dor; o que eles não compraram com dinheiro, mas com o longo amor, o longo, quotidiano carinho: as árvores altas, belas, ainda úmidas da chuva da noite, brilhando, muito verdes, ao sol.

rubem-braga
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