Trabalhadores descarregando barco, Rio São Francisco, Bom Jesus da Lapa-BA, 1948. Foto de Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Otto Lara Resende gostava de dizer – e até deixou gravado, em 1981, num texto autobiográfico para o disco Os quatro mineiros – que nasceu num 1º de maio “não por ser Dia do Trabalho, mas por ser feriado”. Só gente mal informada poderia concluir daí que se tratava de alguém avesso ao batente – e para esses haveria um desmentido cravado em 1º de maio de 1991, data em que, chegando a nada juvenis 69 anos de idade, Otto iniciou na Folha de S.Paulo uma colaboração quase diária, só interrompida às vésperas da morte que o levou em 28 de dezembro de 1992. Ele quis que a crônica da estreia se chamasse “Bom dia para nascer” – texto cheio de diabruras bem suas, no qual, lá pelas tantas, se lê sobre outro 1º de maio, o de 1500, no qual Pero Vaz de Caminha tomou da pena para comunicar ao rei de Portugal o achamento de um país no Hemisfério Sul. Otto não haveria de perder a deixa para registrar os solavancos cívicos que esse país vivia sob Collor de Melo: “Como o Brasil também é Touro, está difícil de pegá-lo à unha”.
Visto – hoje, nem tanto – como “o mês das noivas”, também nesse particular maio foi especial para o cronista mineiro, pois nele se casou, em 1950. Com um detalhe saboroso, lê-se em “A moda de casar”: ao entrar na capela do Mosteiro de São Bento, no Rio, para desposar Helena, Otto Lara Resende vestia terno alheio, cedido por Millôr Fernandes. A fatiota em questão devia ter encantos especiais, pois nela se acondicionaram outros amigos do humorista em trâmites matrimoniais.
Quanto a Rachel de Queiroz, as lembranças de maio a remetem às profundezas da infância, à minúscula Guaramiranga, no Ceará, onde, na Matriz da Conceição, havia então coroações e novenas, com “moças vestidas de branco, o rosto corado do ar frio da serra”. Ali como em toda parte, conta a cronista em “Mês de maio”, eram dias de casamentos – tantos que era preciso fazê-los “por atacado: quinze, vinte pares alinhados em semicírculo em redor do altar”. Para Rachel, porém, cessam aí as recordações doces dessa quadra do ano cujo nome homenageia Maia, mulher do deus Apolo. Na mesma crônica, ela observa com amargura que o 1º de Maio já não era o mesmo, pois “comunistas e fascistas estragaram a data dos trabalhadores”. O ano era o 1954, e o mundo, mal saído do grande conflito de 1939-1945, vivia então os temores e angústias da Guerra Fria.
Sem o pretexto do Dia do Trabalho, vários outros cronistas também se ocuparam do sofrimento das classes socialmente desfavorecidas que assombrava a colega cearense. No ardor de seus 22 anos, Rubem Braga se emocionou com a morte de um tuberculoso em plena rua, no Recife. “No fundo, somos os Silva”, concluiu ele. “Não temos a mínima importância.” Publicada pela primeira vez em 1935 como “Luto na família Silva”, a crônica saiu novamente em 1949 como “A família Silva”, e sem referência a luzidios de clãs situados no outro extremo do espectro social – os Crespi, Matarazzo, Guinle, Rocha Miranda e Pereira Carneiro –, sobrenomes que, como o título original, figuram nos livros O Conde e o passarinho e 200 Crônicas escolhidas.
Rubem Braga voltaria a tratar dos desfavorecidos em diversas crônicas, como “Sewel”, “Bonde”, “O pomar” e “Êxodo” – esta última sobre os espinhos do êxodo rural: “Quem se impressiona com a miséria das grandes cidades”, avalia ele, “é porque não conhece essa miséria muito mais funda, mas silenciosa, obscura, dos milhões de criaturas disseminadas, perdidas na lonjura das léguas sem fim do nosso mato". Em “Manifesto”, dirige-se aos operários que vê construindo um prédio em frente ao seu, e a eles faz, nas últimas linhas, em desconcertante convite, do qual não se falará aqui. Rubem acredita que, de certa forma, está com eles na mesma canoa: “Nossos ofícios são bem diversos. Há homens que são escritores e fazem livros que são como verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai".
Como Rubem Braga naquela rua do Recife, em “A tarde era de maio...” Paulo Mendes Campos se depara numa esquina de Ipanema, caída no chão, entre moscas e trapos imundos, com uma gestante prestes a parir, sob as vistas de passantes enojados – vê isso justo depois de ter lido nos jornais, no ônibus, anúncios de presentes para o Dia das Mães, que também se comemora em maio. Em “A penosa urgência...”, imerso na leitura dos classificados, pois está se mudando de pouso, Paulo vê seu domingo estragar-se “nesse encontro das pequenas misérias dos desempregados com a mesquinhez dos que oferecem alguma coisa". Em “O gerente deste jornal não..." ele fala de um trabalhador que, embora cego, vive de fazer chaves e consertar fechaduras. O personagem de tal forma o impressionou que, anos depois, a ele voltará em “O cego” – crônica que, com título ampliado, “O cego de Ipanema”, daria nome a seu primeiro livro de crônicas.
Sem lhe dedicar texto específico, Antônio Maria fez de maio o fundo sobre o qual se tece uma de suas crônicas mais delicadas e sutis, datada do último dia desse mês, “Despedida”, no qual o que lhe vai na alma é apenas sugerido. “Através dessa janela vejo coisas que, antigamente, eram poderosas e fecundas”, registra ele. “O céu repete o azul de tantas tardes acontecidas em maio”. O que mais deseja, naquele instante, é estar num lugar do mundo “onde as coisas do amor aconteçam sem testemunhas".