O gerente deste jornal não me deixará mentir, porque ele já foi amigo e principal protetor do cego de minha rua quando morava em Ipanema. Por sua intercessão, o cego dormia na garagem do seu edifício, de onde foi obrigado a sair, por imposição dos outros moradores, que reclamavam contra as imprecações que o cego proferia, madrugada a dentro, quando estava alto e, de certo, lhe pungia mais o seu destino.

Em crônica antiga, já contei alguma coisa sobre o cego: o seu andar espantosamente rápido, o seu jeito de cruzar a rua, erguendo antes a cabeça na direção do tráfego, como se a cabeça fosse um radar, e um inenarrável pileque em que o vi numa tarde ensolarada de domingo.

Foi o próprio Zélio Valverde que há tempos me forneceu outras informações sobre ele. Disse-me que o cego, inteligente e sensível, disfarça a sua mágoa em um orgulho intransigente. Ofende-se até a cólera se alguém se compadece dele e procura ajudá-lo, só aceitando dinheiro ou favores em troca de serviços prestados.

De profissão, faz chaves e conserta fechaduras, chaves ainda perfeitas em uma época na qual esse ofício se prejudica muito com a pressa moderna.

Uma noite, são ainda informações prestadas por Zélio Valverde, este chegara em casa sem chave, estando sua família a passar uns dias fora do Rio. Atravessando a área de seu apartamento térreo, conseguiu chegar à porta da cozinha. Chamou o cego na garagem e perguntou-lhe, sem muitas esperanças, se ele poderia dar um jeito. O cego foi buscar uma chave de fenda, desmontou em alguns minutos os parafusos que prendiam as dobradiças ao marco, removeu a porta e a recolocou no lugar. Para o cego não fazia diferença a treva, mas para Zélio Valverde aquela proeza no escuro espantava.

Mora agora em uma garagem quase defronte de minha janela. Deixou crescer uma barba espessa e preta. Vive da garagem, onde trabalha, para o botequim, onde bebe, bate papo e escuta rádio. Os trabalhadores que almoçam no botequim o tratam afavelmente; os garagistas de outros prédios costumam conversar longamente com ele.

Amigos meus que já o viram a caminhar pela rua dificilmente acreditam que ele seja completamente cego, tal naturalidade e a decisão de seus passos. Em seu mundo fechado, ele se concentra, não tendo a incerteza do caminhar distraído dos que veem.

Uma vez, quando ele passava por nós, uma pessoa a meu lado fez um comentário que parecia estranho e, no entanto, apenas nascia da simplicidade com que devemos reconhecer a evidência:

― Você já reparou como ele é elegante?

Seu rosto erguido para cima, seu passo firme ligeiramente amedrontado, seus olhos vazios de qualquer expressão familiar, suas roupas rotas, compunham realmente uma figura misteriosamente elegante; uma elegância espiritual e entretanto visível, uma elegância que as nossas limitações e os nossos hábitos mentais jamais conseguirão exprimir.

Soube que às vezes se revolta perigosamente contra o seu triste estado. Manhã de um dia desses, ele saíra do boteco e se postara em atitude estranha atrás de um carro encostado ao meio-fio. Esperei um pouco na esquina. O cego parecia estar à espreita de alguma coisa, uma espreita sem olhos que o fazia dar a ideia de um animal à espera. A rua estava quieta, só um carro vinha descendo-a silenciosamente. Notei que ele se contraía à medida que o automóvel se aproximava. Quando o carro chegou à altura do lugar em que estava, o cego saltou agilmente à sua frente. O motorista brecou a um palmo de seu corpo, enquanto ele vibrava a bengala contra o motor, gritando: “Está pensando que você é o dono da rua?”

Outro dia, tive a ocasião de vê-lo em um momento de mansidão. Um rapaz, que limpava um Cadillac sobre a calçada, deixou que ele apalpasse todo o carro. Suas mãos correram pela carroceria, pelos frisos, pelo para-lama, pelo painel, minuciosas, observadoras. O rosto do cego se iluminava, deslumbrado. Como se seus olhos estivessem vendo pela primeira vez uma grande queda d’água, o mar, uma tempestade ou uma bela mulher.

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