Publicada, anteriormente, em O conde e o passarinho, José Olympio, 1936, com o título "Luto na família Silva", e, posteriormente, em 200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga, Record, 1977.
É a pedido de um leitor que transcrevo esta crônica antiga, publicada em 1935 no Recife. Suprimi apenas alguns nomes próprios. O leitor me pergunta se a família Silva "continua por baixo na política". Passo a pergunta aos senhores que estão neste momento resolvendo, ou complicando, o problema da sucessão presidencial. E faço votos para que nessa batalha política que se avizinha a família Silva seja lembrada – não para os apelos fáceis da demagogia – mas para pensamento e ação efetivos na construção de uma democracia melhor. Mas vamos à crônica.
A Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava deitado na calçada. Uma poça de sangue. A Assistência voltou vazia. O homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco leio o nome do sujeito: João da Silva. Morava na rua da Alegria. Morreu de hemoptise.
João da Silva – Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os joões da silva. Nós somos os populares joões da silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; não temos avós na história.
Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pela rua e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome "de Tal". A família Silva e a família "de Tal” são a mesma família. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva.
João da Silva – Nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho – vermelhinho da silva. Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo, nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. Nós sustentamos várias famílias importantes do Brasil e auxiliamos várias famílias importantes da América do Norte, da Inglaterra, da França, do Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família faz tudo.
Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política...