Até cronista dá crônica

Ponto de encontro, Ladeira Porto Geral, rua 25 de Março, São Paulo-SP, 1940 circa. Foto de Hildegard Rosenthal. Coleção Hildegard Rosenthal/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Certamente não é por falta de assunto que um cronista toma às vezes como tema algum colega de ofício. Muitos o fizeram, não raro ainda em vida do personagem. Otto Lara Resende, por exemplo, escrevendo sobre Fernando Sabino, como adiante se verá. Também não é raro que o objeto da crônica seja alguém já falecido. Houve um momento, em 1950, em que Rachel de Queiroz, na sua famosa última página da revista O Cruzeiro, se ocupou de dois cronistas mortos, nosso Lima Barreto e o Machado de Assis, por ela reunidos em “Dois negros”. Não é difícil que tenha, com essa crônica, ateado discussões ao compará-los pelo ângulo da raça. Na opinião de Rachel, brandindo há 70 anos argumentos hoje mais que nunca em pauta, Machado “jamais tratou de criar o seu lugar ao sol como o homem de cor que era” – ao contrário de Lima Barreto, que “se queria impor como negro, como mulato”.

Dos doze cronistas do nosso Portal, quem mais frequentemente escreveu sobre seus pares, vivos ou mortos, foi, disparado, Otto Lara Resende. E com que delicadeza e graça! Fernando Sabino atravessava um momento tormentoso quando dele mereceu “Um escritor, uma paixão”. Levava então bordoadas de todos os lados, provocadas talvez menos pelos defeitos de Zélia, uma paixão do que pela escolha da personagem do livro, Zélia Cardoso de Melo, controvertida ministra do governo Collor. O amigo, que sofreu ao ver o calvário do autor, passou ao largo desse assunto – foi outro o “gancho” de sua crônica: o cinquentenário da estreia de Sabino em livro, aos 18 anos, com os contos de Os grilos não cantam mais. “Ninguém o supera na consciência literária”, fez-lhe justiça o colega, “ninguém foi mais fiel à sua vocação do que Fernando Sabino.”

Por aquela época houve uma madrugada de insônia em que Otto, tendo se lembrado de um poema de Paulo Mendes Campos, foi caçá-lo entre seus livros. E na esteira dos versos lhe vieram mais lembranças – uma delas, muito antiga, do tempo em que, adolescentes, alunos de colégios diferentes, os dois se conheceram em São João del-Rei. “Chegamos juntos ao mundo”, registrou o cronista, apenas dois meses mais novo do que Paulo. Tinham 15 anos no primeiro encontro, e encontrados atravessaram a vida. Inoxidável, sua amizade só seria interrompida ao cabo daquela madrugada maldormida, quando veio pelo telefone a notícia de que Paulo acabara de morrer.

Otto sentia ainda o primeiro impacto da perda quando voltou a escrever sobre o amigo, dessa vez dispondo de espaço menos acanhado, sob um título que resume o essencial: “Ao menino e ao destino o poeta permaneceu fiel”. Oito meses mais tarde, Paulo Mendes Campos será novamente inspiração para crônica, pois Otto não deixaria passar em branco o dia em que “O jovem poeta setentão” teria chegado a essa idade. Sobre ele, não tinha dúvida: “Em prosa e verso, só foi poeta”.

Além de Sabino e PMC, Otto cronicou sobre Clarice Lispector. Em “Começo de uma fortuna”, evocou a dificuldade que ela teve em se fazer lida e conhecida, pois, casada com diplomata, viveu no exterior, longe da cena literária brasileira, até o final dos anos 1950. De férias no Rio, em 1954, 11 anos depois da estreia com Perto do coração selvagem, ela era ainda tão escassamente conhecida que outro amigo, Paulo Mendes Campos, em “Uma noite, uma família...”, julgou indispensável apresentá-la a seus leitores. O reconhecimento só começaria a vir em 1952, com a publicação de Alguns contos, livrinho que, curiosamente, circulou à margem do comércio.

Em "Claricevidência", o assunto de Otto Lara Resende é o interesse que a escritora suscitava entre finos leitores estrangeiros, como o romancista americano John Updike. Do mesmo cronista há também um texto em carne viva, “Mãe, filha, amiga”, escrito e publicado no dia mesmo da morte de Clarice, amiga desde o tempo em que tinham 20 e poucos anos.

Sobre Otto, que tão copiosamente o homenageará depois de morto, Paulo Mendes Campos escreveu uma crônica em que narra aquilo que por pouco não foi a morte dele: jovens repórteres, voltavam eles de Bocaiúva, Minas Gerais, aonde tinham ido cobrir um eclipse do sol, em 1947, quando o veterano avião militar americano em que viajavam despencou bruscamente, para desviar-se de outro aparelho, manobra que arremessou no teto quem não usava cinto de segurança – caso de Otto, que teve a cabeça quebrada. Na mesma crônica, “Medo de avião”, Paulo fala do susto que o dono da cabeça passou num político mineiro, durante um voo mais tranquilo, ao lhe mostrar no jornal do dia um poema de Drummond, “Morte no avião”.

Nenhum de nossos cronistas inspirou mais crônicas do que o mais encaramujado e lacônico deles, o incomparável Rubem Braga – que, no dizer de Otto, em “Um ano de ausência”, até poderia corresponder à fama de urso que tinha, mas não qualquer: era um urso que “fabricava o seu próprio mel”. Em “O pastel e a crise”, fala do “verdadeiro sábio” que foi o Velho Braga, capaz de ter com a vida “uma relação direta, sem intermediação intelectual”. “A força do contraste”, também dele, mostra Rubem impressionado com o que presenciara num velório: “Nunca vi tanta mulher bonita”, admitiu ele. (Por algum motivo, o cronista mineiro se permitiu aqui uma licença, não poética, mas cronística: na vida real, quem o Rubem foi velar não era uma “querida amiga”, e sim Hélio Pellegrino, tanto que o título de um pequeno texto que escreveu para a revista IstoÉ na morte do psicanalista e poeta se chamou “Nunca vi tanta mulher bonita”.)

Braga, inaugurador-mor”, de Paulo Mendes Campos, é um gordo e suculento parágrafo contendo uma quantidade de inaugurações a que Rubem compareceu, nem sempre como repórter, entre elas a de um leprosário em Guaporé e, sic, “um ditador do Uruguai” em Poços de Caldas, Minas Gerais, aí por 1934. Em “Assim canta o Sabiá”, Paulo rememora capítulos de amizade como o tempo em que os dois compartilharam um apartamento em Copacabana.

Rachel de Queiroz, em “Rubem Braga explicava Portugal...”, recompõe um episódio saboroso acontecido num bistrô parisiense, em que o Sabiá, subitamente loquaz, se pôs a discorrer sobre o que teria sido uma lamentável deterioração do português falado na Terrinha – ainda que a provocação fosse lhe custar a súbita partida de uma beldade lusitana para a qual, naquela mesa, vinha arrastando a asa. Outra teria sido, com certeza, a reação de José Carlos Oliveira, que em “O indiscutível Rubem Braga” busca pagar débitos literários com o experiente coestaduano: foi graças a ele, credita, que veio a descobrir o quanto “o nosso idioma é dócil”.