Era Paris, 1950. Oyama e eu curtíamos a nossa primeira visita à Europa. Num bistrô de esquina, fazíamos roda em torno de um vinhinho branco, servido não em garrafa, mas em copitos. Conosco, Rubem Braga, um jornalista português, muito simpático, por nome Lobo, se bem me lembro; e uma bonita modelo, chamada Souzel, também portuguesa. O Braga, no momento, roía-se de amores pela bela Souzel, que só lhe dava desdéns. Num certo momento, quando discutiam uma não-ida a Londres, que Rubem propunha, ele falou um brasileirismo explícito e a moça corrigiu: "Em Portugal não dizemos assim". Foi a gota d'água, a última. O Braga, repelindo a correção, tomou a palavra e saiu-se com uma teoria que, segundo ele, "um grupo de estudiosos" estava pondo em voga. Seguinte:
"Portugal, nos finais do século XV, já em plena ebulição renascentista, era pioneiro na navegação atlântica, descobriu as ilhas oceânicas mais próximas, mandou o Vasco da Gama fazer o contorno à África para alcançar a Índia, vivia o apogeu da chamada 'Escola de Sagres'. E no auge do entusiasmo pelo que iria se chamar "as Descobertas", preparou a Armada de Cabral, que veio inventar o Brasil. E, de repente se viu, além de dono da rota para as Índias, senhor de todo aquele continente novo, que ia, de acima do Equador, até a embocadura do Prata, rio cujo simples nome já representa uma fascinante promessa de riqueza.
Tesouros (quem sabia ouro, quem sabia diamantes?) eram o sonho criado pelas Descobertas àquele pequeno país de beira-mar, apertado contra a Espanha, na Península. Portugal transformou-se então num grande estaleiro, fabricando febrilmente as suas caravelas para percorrer a nossa costa, internar-se terra adentro, tomar posse avidamente do Brasil. A população portuguesa (então uns três milhões de pessoas – os números eram do Braga) praticamente se atirou toda na aventura dos mares; a fina flor dos fidalgos, dos letrados, do poderoso clero, partia tudo para o Brasil, na fácil disputa à indiada, ainda na era da pedra lascada, que se apavorava ante o estrondo dos seus mosquetes boca de sino. (Ele lembrava a história do Caramuru). Ocupação, entradas e bandeiras, jesuítas! E enquanto o Brasil crescia, Portugal se esvaziava. A fina flor continuava emigrando em massa, não mais para aventurar nos mares, mas para se fixar na terra. Veio Minas e o seu ouro. A arcádia ultramarina, Gonzaga e os companheiros. O Brasil era o grande polo e, como para cá vinham os que melhor escreviam, os que melhor falavam – a própria intelligentsia –, a sangria dos valores cada vez mais amenizava a população que sobrara na terra. Onde se carpia um saldo de viúvas e velhos, (foi então que inventaram a palavra saudade, ou "soidade" – cito sempre o Rubem). A última pá de terra foi a invasão napoleônica, a mudança total da Corte, com sua biblioteca, os seus tesouros de museu, que não mais voltaram para lá. E ele rematava, para a moça desdenhosa: "Portugal perdeu até a língua, a original, a de Camões e dos outros clássicos. Ficou falando um dialeto de camponeses e pescadores, que é isso que vocês falam agora!" E se exaltava: "Quer uma prova? Definitiva? Recite Os Lusíadas ao ritmo do atual falar português, que fica todo de pé quebrado! Camões metrificou o poema no ritmo do falar de então, que veio a ser o nosso". A bela levantou-se furiosa, pegou da bolsa e disse que "definitivamente não se iria mais a Londres". Partiu, e o Rubem nem se levantou à despedida. Curvado sobre o copo, resmungava baixinho um soneto – de Camões, claro, em perfeita cadência capixaba, provando a si mesmo que tinha razão.
Isso foi em 1950. Quarenta anos depois continua o mesmo assunto. Mas agora nós perdemos, porque eles se tornaram orgulhosos membros da Comunidade Europeia, e nós uns reles exportadores de mão de obra. E nem temos mais o Rubem pra inventar mirabolantes teorias que nos consolem a dor de cotovelo.