Fonte: O globo, de 10/12/1977

Acordei ontem e disse à minha mulher: “Acho que a Clarice morreu”. (Anteontem, tinha mais uma vez combinado com Rubem Braga de ir visitá-la. Tão pertinho, e não fomos.) Daí a pouco telefonou Evandro Carlos de Andrade: “Clarice morreu”. Levei um choque. O telefone tocou e fiquei com medo de ser a Clarice, para me passar um pito. Há tempos ela me telefonou: queria vir jantar aqui em casa. Não veio. Há dias, pouco antes de saber-se doente, telefonou para um amigo e começou a chorar. Queria ouvir uma voz humana, disse ela. E tinha sido atendida com um alô tão doce, tão bom, que se pôs a chorar.

Algumas vezes passamos anos sem nos ver. Um sábado dou com ela na Rua Prado Júnior. Saltei do carro e rimos e falamos e nos abraçamos. Tinha comigo um dos meus filhos, então com seis anos. Esquecera-se da Clarice, que não via há muito. “Quem é aquela moça loura?” – me perguntou ele. E antes que eu respondesse: ‘Ela tem dentro dela uma coisa que pula o tempo todo. Ela tem filho?’ Uns dois anos depois, alta noite, eu estava batendo papo com Clarice em seu apartamento do Leme e, de repente, ela me deu um respe: “Diga ao seu filho que eu posso ser mãe, sim. Posso ser mãe dele. Posso ser sua mãe, Otto. Posso ser mãe da humanidade. Eu sou a mãe da humanidade”. Foi tudo num crescendo avassalador.

Uma vez eu estava aqui mesmo onde me encontro e o telefone tocou. Era de tarde. Clarice me passou a maior espinafração e desligou. Ficamos amuados, achei que ela foi muito injusta comigo. Meses depois, fui visitá-la. Sentado no chão, batemos um papo interminável, maior que a noite. Clarice sabia tudo. “Eu sou burra” – disse ela muitas vezes. Tinha a centelha do gênio. Era um exemplo brutal da singularidade da pessoa humana. Clarice era Clarice. Nunca, em tempo algum, haverá outra, haverá duas Clarices. Com seu jeito brusco e carinhosíssimo. Amiga insuperável, de generosidade oceânica. E toda mediúnica, adivinhante. Sabia tudo. Depois do incêndio em que se queimou, fomos almoçar com ela, Antonio Callado e eu, e de repente ela explodiu para cima de mim: “Que é que você está me olhando? Quer ver as minhas cicatrizes?” E exibiu as pernas de que ela e nós tentávamos fugir. Mãe da humanidade. Sim, ela podia ser. Podia tudo. Estou destroçado.

Clarice, minha filha. A vida separa, isola. A morte talvez junte, congregue. Clarice, minha amiga de toda a vida. Minha amiga na morte. Felizes os que foram convidados para sempre. Até já, Clarice.

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