Paulo Mendes Campos publicou A palavra escrita, sua estreia, em outubro de 1951. Caminhava para os 30 anos. Se quisesse, podia ter aparecido antes em livro e de maneira menos discreta. Composto à mão para as Edições Hipocampo, de iniciativa de Geir Campos e Thiago de Mello, a tiragem foi só de 126 exemplares. Trazia uma gravura de Athos Bulcão. São 37 poemas, selecionados por um critério que pretendia dar notícia da apurada oficina literária do poeta. Sua produção naquela altura já era farta, tanto em prosa como em verso. A seleção foi por isto rigorosa. Deu uma ideia bem forte de quem era Paulo Mendes Campos ― de onde vinha o poeta culto e para onde ia o espírito lúcido que o animava.
Seu primeiro poema, segundo o seu próprio testemunho, data de 1934. Paulo tinha 12 anos. Nascido num domingo de carnaval em 1922, contemporâneo da Semana de Arte Moderna, do Modernismo, Paulo sabia então apenas uns poucos versos de Mário de Andrade. Tanto bastou para que o menino-poeta enveredasse pelo caminho do verso livre, libérrimo. Vinte e tantos anos depois, ele diria que esse poema, que celebrava Belo Horizonte e fustigava a política mineira, era a sua melhor obra poética. É provável que, mais do que o poema, Paulo exaltasse o poeta de 12 anos que o cometeu. De fato, foi a esse menino ― e a esse poeta ― que ele quis permanecer e permaneceu fiel toda a vida.
Conheci-o pouco depois. Aos 15 anos, ele e eu internos, ele no Santo Antônio, eu no Padre Machado, estávamos encharcados de literatura. Tínhamos ambos descoberto Machado de Assis. Era um segredo que cada qual guardava para si. Nos encontros do Café Java, ou nos campos de esporte, escondíamos um do outro a nossa febre literária. Ele era orador do Grêmio Jackson de Figueiredo. Eu era tesoureiro do Grêmio Literário. Eram os nossos disfarces. Em dezembro de 1938, despedimo-nos de São João del-Rei e de seus sinos, como se pudéssemos ir adiante, na grande aventura do mundo, sem estarmos presos à nossa pequena fonte mineira. Em Belo Horizonte iniciamos, adultos, nossa interminável conversa peripatética.
A inquietação, traço indelével de seu espírito, iria levá-lo a Porto Alegre. Queria ser aviador. E logo saltou de curso em curso ― odontologia, direito, veterinária. Em nenhum colou grau. Era formado só em datilografia, estabelecido com um escritório que ele próprio chamou de “fazeção de textos”. Foi por aí que pagou o preço da sobrevivência, como cronista, roteirista, ghost writer, redator e repórter. Por gosto e escolha, teria sido um ensaísta de mão cheia. E crítico talvez, mais para entender do que para julgar. E mais para aprender do que para ensinar. Tinha a vocação do estudo e da pesquisa, apoiada na infatigável curiosidade e servida por uma memória privilegiada.
Em 1954, dele escreveu Hélio Pellegrino que, além do poeta, era um espírito crítico em busca de uma nova ordenação ética do mundo. Sempre admirei nele, disse Fernando Sabino, a excepcional agudeza da percepção para tudo quanto há de mais sutil no humor ou na poesia. Na apresentação de seus Poemas, em 1979, escrevi, convicto, que Paulo, de todos nós, que éramos legião, denunciava a vocação mais séria e mais alta, como poeta e como prosador. A sua obra em prosa e verso não desmente a opinião dos amigos. Antes a confirma, ainda que seja preciso buscar o seu perfil por trás do que fez de contingente o circunstancial. Não é aqui o caso de especular sobre os caminhos que abriu e palmilhou.
Na tentativa de preservar sua liberdade, fugiu do que na nossa geração foi o cativeiro do jornalismo de banca. Se a crônica era uma tríplice liberdade ― de espaço, de horário e de assunto ―, era também facilidade e, pior, por seu turno uma outra escravidão. Essa liberdade, que ele próprio chamou de aparente, custou-lhe muito trabalho e muita insegurança. A veia boêmia representava aí uma válvula de escape. Ou a busca do equilíbrio, que é a seu modo ascética. Assim como congrega, o álcool isola. E ajuda a sair da depressão, como ele próprio declarou. A sair e a entrar. A cair no ciclo da fatalidade que, sendo escolha, é também destino.
Paulo Mendes Campos foi fiel ao seu destino. Nunca abriu mão da sua sensibilidade estética, nem do seu rigor intelectual. Dissimulado em timidez, o seu amor-próprio, vigoroso, não fechou a porta da afeição. O que na juventude a olhos estranhos parecia orgulho, na maturidade veio a ser sabedoria. A compassiva serenidade, com uma ponta de desdém que não cultiva ilusões, nem corre atrás da sanção alheia. Tendo como indispensável o senso de humor, ele sabia rir ― e ria na ventura, ou da desventura. Só assim o fardo da vida, ou do destino, é suportável. E aqui está uma lição, ou melhor, uma alegria que se encontra tanto no prosador do cotidiano como no poeta dos temas eternos. Num e noutro está o melhor de Paulo Mendes Campos, que aos 20 anos chocou os carreiristas com uma declaração sincera: “O sucesso não me interessa. Faço questão de fracassar”. Não conseguiu.