Coreto recém-construído na Praça da Harmonia, Bairro da Saúde, Rio de Janeiro-RJ, 1988. Foto de Rossini Perez. Coleção Rossini Perez/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Difícil imaginar o que Rachel de Queiroz, falecida em 2003, escreveria sobre o Carnaval da Covid, sem blocos na rua e com sambódromos abertos apenas à vacinação. Difícil imaginar, também, que em algum momento de sua meninez, juventude ou idade madura a escritora cearense tenha sido foliona. Talvez sim, pois no ano de 1949 ela pingou um lamento, ou quase, na sua já então famosa última página da revista O Cruzeiro. A grande festa popular “morreu, se acabou”, registrou Rachel em “Carnaval”, reduzida que fora “a dois grupos bem distintos e algumas vezes adversos: a turma dos exibicionistas e a turma dos melancólicos espectadores”.
Sua colega Clarice Lispector fazia parte da segunda turma – pelo menos na decisiva década em que viveu no Recife, entre os 5 e os 15 anos de idade. Com a mãe doente, conta ela em “Restos de Carnaval”, ninguém na família tinha cabeça para pensar na trepidação dos dias em que reinava Momo. Clarice não passava da entrada do sobrado onde morava, munida, no máximo, de lança-perfume e um saco de confete – mas nem por isso se queixava: “Mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz”. Que dizer, então, do dia em que, tendo improvisado com uns restos de papel crepom sua primeira fantasia, Clarice atraiu o silencioso sorriso de um garoto que sobre ela fez cair uma chuva de confete?
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Num improvável bloco para o Carnaval, nossos cronistas com certeza integrariam a categoria espectadores, com ênfase na melancolia de que falou Rachel – não fosse esse um ingrediente que, uns mais, outros menos, todos eles destilaram em seus escritos. “O meu Carnaval sem nenhuma alegria!”, já dissera Manuel Bandeira no poema “Epílogo”. Melancolia que, nem é preciso dizer, nunca dependeu do calendário para sair à rua. Casos agudos como o de Carlinhos Oliveira, que, enredado numa sufocante “falta de sentido”, chega a se ver, em “Ao longo do mar”, como “um pano sujo atirado num terreno baldio pelo mais sórdido dos mendigos”. Não vislumbra estrelas em seu firmamento – mas felizmente não se trata do fim: “No ponto mais extremo da desesperança”, ele descobre, “há uma certa alegria”.
Rubem Braga, em “A menina Silvana”, se aflige com a “mais triste de todas as tristezas, a tristeza da infância”. Há tantas outras – como a que experimentou num fim de outono, tema de “O inverno”. Não há como iludir-se, deixa claro em “Aconteceu”: “Não tenho a menor dúvida, meus queridos senhores, de que a vida é triste”. E arremata: “Ser feliz dá muito trabalho e muito aborrecimento”. A ilusão pode estar na noitada que ele descreve em “A grande festa”, celebração a que não faltam imperadores e presidentes da República, e na qual mesmo as pessoas doentes e tristes “estavam bem”, “a humanidade estava contente consigo mesma, havia muito entendimento” – e então eis que...
Em outra fantasia, “Lembrança”, há um homem aborrecido de estar em seu quarto, “em uma casa de cômodos grande e triste” povoada de “mulheres feias de 42 anos”, “mocinhas muito virgens” e “homens carecas”. Adiantará alguma coisa sair à rua e caminhar a esmo? Em “Galeria”, cansado e desanimado da vida, “e tão vazio de amor”, o cronista não vê recurso senão hospedar-se num hotel no Centro do Rio – onde não tarda a se ver convertido num lavrador de 54 anos (ele que, no momento em que escreve, ainda não chegou aos 40), às voltas com mulher doente, casa hipotecada e filho na cadeia. Desce à rua, caminha – e vai voltando a ser Rubem Braga. Problema resolvido? Não: trata-se apenas de “um leve, distante, humilde e pobre alívio”. Talvez não para si, mas para os outros ele, quem sabe, teria remédio: “Meu ideal seria escrever...” “uma história tão engraçada” que funcionasse como espantalho, como antídoto para tristezas em geral. (Fica a veemente sugestão: além de ler a crônica, trate de ouvi-la na voz do poeta Eucanaã Ferraz.) Valha também para o Carnaval – e aqui não custa voltar a Manuel Bandeira, desta vez o Bandeira de “Não sei dançar”:
“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!”
Mas atenção, adverte Rachel de Queiroz em “Confissão do engolidor de espadas”: nem tudo sirva na luta para sossegar os demônios da alma. Certo escritor, por exemplo, cujo nome não revela, entregou-se a um divã, do qual se levantou liberto de seus tormentos – mas a um preço ainda mais alto do que o pago ao psicanalista: nunca mais escreveu coisa que prestasse. Mais cauteloso foi Paulo Mendes Campos em seu magnífico “Videoteipe da insônia”, que aliás reproduz largas passagens do poema autobiográfico “Fragmentos em prosa”, dos anos 1950, incluído em seu segundo livro de poesia, O domingo azul do mar, de 1958.
“O homem é um animal triste”, escreveu Paulo numa crônica de juventude (estava com 24 anos), “Professores de melancolia”, temperada com ingrediente muito seu, o humor: há “indivíduos”, exemplifica, que, na praia de Copacabana, “só veem aqueles bichinhos da areia”. Já entrado na maturidade, ele nos deu a deliciosa “A arte de ser infeliz”, caricatura do “homem perfeitamente infeliz” – aquele que se julga ameaçado “ao norte, pela queda do cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes”. O “mal profundo” do “homem perfeitamente infeliz”, crava o poeta e cronista mineiro, é “julgar-se um homem perfeitamente feliz”.