Dantes carnaval era tempo de desabafo, ou como se diz agora, tempo de desrecalque. Chegados os três dias a gente se libertava de todo o sangue pisado que se acumulara no fígado durante o ano inteiro, atirava-se longe a censura, vestindo-se uma camisa listrada ou uma saia de baiana, e só se voltava a pensar em vida e em mundo quando chegasse a quarta-feira de cinzas. Quem fosse inimigo de carnaval tomasse o trem e partisse para longe, pois quem ficasse era para divertir. Naturais e estrangeiros eram unânimes em ressaltar esse lado sublime do Carnaval do Rio: a sua universalidade. Não adiantava ter bigode nem cabelo branco, ser desembargador, nem coronel. Gritar, sapatear, dar ataque, era a lei geral, ninguém reparava. Mesmo porque não havia mesmo quem reparasse, embebidos que estavam todos em providenciar o próprio divertimento. Até a polícia fechava os olhos, ou abria-os para outras coisas mais interessantes, que polícia, ao contrário de todas as aparências, também pode ser homem de carne como nós, com olhos para ver e coração para apreciar.

Mas aos poucos — aparentemente desde o tempo em que a ditadura começou a operar entre nós os seus famosos carnavais dirigidos — aos poucos a coisa foi mudando. O processo foi lento, mas inexorável. Cada ano piorando um pouco, esfriando mais. E afinal chegamos ao triste ponto em que estamos hoje em dia: não há animação do prefeito, não há decoração de rua nem alto-falante oficial que convença o povo a brincar como brincava outrora. Carnaval morreu, se acabou.

Atualmente divide-se a multidão que vai à rua durante o tríduo de Momo em dois grupos bem distintos e algumas vezes adversos: a turma dos exibicionistas e a turma dos melancólicos espectadores. Os primeiros, em noventa por cento dos casos vestem saias de mulher, põem laço no cabelo e batom nos lábios, arredondam o corpo com recheios feminis e saem individualmente ou em cordões, saracoteando e cantando, visando não divertir-se, como os inocentes mascarados de há vinte anos, mas unicamente dar espetáculo. Parecem profissionais de ribalta barata, um olho em si, outro no público, e nenhuma alegria honesta se ousaria mesclar com eles.

Os do segundo grupo, o único sinal visível de carnaval que ostentam é a ausência de gravata. Percorrem as ruas em passo de enterro, a boca muda, o olhar severo, o espírito crítico, fazendo o inventário dos ridículos e das indecências. Jamais um deles se arriscaria a cantar a marchinha do dia, e jamais, ao grande jamais, se rebaixariam a aderir a um cordão e saírem pulando no meio da rua. Raro, raríssimo é o que ainda concede um sorriso rápido ante uma palhaçada mais ostentosa de algum dos chamados foliões. E só mesmo muita cara dura é capaz de enfrentar a censura aberta que eles exibem na feição dispéptica.

Talvez alguma exceção se registre a essa regra melancólica, no que diz respeito aos bailes intramuros e às concentrações carnavalescas suburbanas, ― a de Madureira por exemplo. E daí, talvez seja mais fama. Nunca fui a Madureira para ver.

Contudo, graças à teimosia das autoridades que insistem em ornamentar a avenida e continuam subvencionando o tristíssimo desfile dos carros alegóricos, ainda nos mantemos na ilusão de que sobrevive o carnaval carioca, que seria por sinal o melhor carnaval do mundo. E quando se constata que o do ano corrente não prestou de todo, transferem-se as esperanças para o carnaval do ano próximo, que será tão animado quanto o de 1900. Mas ano virá em que nem essa esperança há de resistir, embora se diga que a esperança é sempre a última que morre...

rachel-de-queiroz
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