Isso foi no dia 8 de dezembro, no Rio de Janeiro. Um homem não tinha nada o que fazer. Estava aborrecido de estar em seu quarto. Era um quarto remediado em uma casa de cômodos grande e triste, onde havia poeira, crianças, ratos, mulheres feias de 42 anos, mocinhas muito virgens e doentes, homens carecas e, em geral, muitos insetos e famílias.

Do segundo andar chegava um barulho chato de rádio. Deviam estar tocando um tango de mau gosto, que mal podia aparecer entre o barulho dos bondes lá fora, das crianças lá dentro, da arrumadeira que estava arrastando uma cama no quarto vizinho. Os berros esfacelados do tango subiam pela escada suja atravessando os corredores, varavam a porta e chegavam até o ouvido do homem. O homem estava simplesmente de cueca, esticado na cama, sentindo calor.

Então resolveu sair. Calçou o sapato reparando nas meias que não estavam muito limpas. Teve um xingamento surdo, íntimo e desanimado para a lavadeira que não havia trazido a roupa. Apanhou as calças, que estavam mal dobradas em cima da mesa, sobre uns livros sem interesse. Vestiu a camisa que também não estava muito limpa nos punhos, e na qual faltava um botão. Enfiou as calças. Ia lavar a cara para refrescar, mas a torneira não forneceu água nenhuma. Procurou a abotoadura do colarinho. Procurou na camisa, em cima da mesa, na palhinha da cadeira, na gavetinha embaixo da cama. Estava mais suado. Achou no bolsinho da calça. Pôs o colarinho e a gravata amarrotada. Tirou o paletó do encosto da cadeira e aplicou-lhe uns tapas nos ombros para espantar um pouco a poeira. Vestiu-se e desceu a escada.

Quando chegou embaixo, voltou para apanhar os cigarros, que havia esquecido. Desceu outra vez, tendo de dar passagem, na escada, a uma senhora gorda e muito pintada que ia com uma criança para o terceiro andar.

Saiu andando lentamente pela rua. Andou. Andou. Andou à toa com seus sapatos, dos quais o esquerdo estava com o cadarço rebentado. Andou pelas ruas sujas e poeirentas, sobre as quais se espalhava um mormaço chato, entre os veículos barulhentos e os homens suados, as mulheres aborrecidas, as casas de comércio. 

Quando o homem reparou, estava na rua do Lavradio. Então ele viu uma porção de gente vestida como se fosse domingo. Reparou bem. Era muita gente com um ar pateta. Uns entravam outros saíam de uns edifícios, e outros ficavam na calçada e até o meio da rua estreita, onde os carros passavam buzinando com os chauffeurs praguejando. Havia automóveis forrados de branco floridos. Algumas mulheres estavam de véu e os homens de gravata nova. Então o homem se lembrou de que era sábado, e que era o dia da Imaculada Conceição, e que aquilo tudo era casamento.

Não disse nada. Olhou de longe. Pareceu lembrar-se de alguma coisa acontecida há muito tempo. Teve uma espécie de sorriso aborrecido, um sorriso de mormaço. Abanou a cabeça. E foi andando. Na esquina deu uma cusparada, sem importância, por causa do calor e da poeira. E foi andando.

rubem-braga
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