Não hão de voltar de mãos vazias esses homens corajosos e bons que vieram no Angelo del Bimbi pedir ajuda para as crianças italianas mutiladas de guerra. Eu sabia que, nessa ocasião, alguém haveria de escrever lembrando o sofrimento de nossas próprias crianças, não mutiladas pela guerra, mas pela pobreza dos pais e pelo monstruoso egoísmo dos senhores donos da terra.

Sim, temos aqui muitas crianças a socorrer; demais! Não há quem suba a um morro, entre num cortiço ou visite um mocambo e não sinta, no triste quadro das crianças doentes, maltratadas, miseráveis a mais amarga de todas as acusações contra um sistema social tão cheio de brilhos e flosôs. Dá vergonha. E revolta.

Penso que esses dois homens de coração, Lualdi e Bonzi, mesmo que eles conheçam as zonas mais pobres da Itália do Sul, ficariam espantados e tristes se fossem levados a ver a miséria de nossas crianças no fundo de suas choças. E de volta à Itália iriam pedir ajuda para esses estranhos mutilados.

Mas não façamos de nossas tristezas uma desculpa para ignorar a aflição dos outros. Esses garotos italianos que a desgraça da guerra feriu fundo não têm culpa de nada. E eu relembro a impressão que tive, certa vez, em um hospital avançado da FEB. Fui procurar um soldado ferido. Era um dia ruim, em que chegavam da frente, ensanguentados e sujos, homens barbudos de botas enlameadas e uniformes de lã. Em certo momento lancei um olhar à mesa onde estava sendo atendido o último ferido. E me surpreendi. Estava ali um corpo alvo e fino – uma pobre menina, que tremia de dor.

Um camponês velho deu as informações ao sargento: Silvana Martinelli, dez anos de idade. A menina estava quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo. Os médicos e enfermeiros inclinavam-se para extrair os pedaços de aço que haviam dilacerado brutalmente aquele corpo branco e delicado como um lírio. A cabeça de Silvana descansava de lado, entre cobertores. A explosão poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cerrados, sem uma palavra ou um gemido, ela apenas tremia um pouco – e quando lhe tocavam em um ferimento, contraía quase imperceptivelmente os músculos da face. Mas tinha os olhos abertos, e quando sentiu minha sombra ergueu-os um pouco. Nos seus olhos não vi essa expressão de cachorro batido dos estropiados, nem essa luz de dor e raiva dos homens colhidos no calor do combate, nem essa impaciência dolorosa de tantos feridos, ou o desespero dos que acham que vão morrer. Ela me olhou quietamente. A dor contraía-lhe, num pequeno tremor, as pálpebras, como se a luz lhe ferisse um pouco os olhos. Ajeitei-lhe a manta sobre a cabeça, protegendo-a da luz, e ela voltou a me olhar daquele jeito quieto e firme de menina correta.

Contei, numa crônica de guerra, essa história sem enredo de uma menina ferida. Não sei que fim levou, se está aleijada ou perfeita; mas revejo seu fino corpo manchado de sangue, e seus olhos esverdeados. Revejo sua carne branca tremendo de dor. Meus olhos guardam a lembrança de muita coisa desgraçada e de algumas horríveis – mas a imagem do sofrimento dessa menina de uma aldeia toscana chega para me fazer sentir toda a estupidez odiosa da guerra.

Que não deixem o Brasil de mãos vazias esses bravos aviadores italianos; que levem não apenas o conforto que os ricos podem dar como o sentimento de nossa solidariedade diante da mais triste de todas as tristezas, a tristeza da infância.

rubem-braga
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