Periódico
Correio da Manhã
Publicada, posteriormente, em Manchete, de 12 de julho de 1959, com o título de Há momentos.

Eu não tenho escrito porque a situação está de um jeito que o melhor seria ficar mesmo quieto; estou falando da situação interna, não do país, mas do Braga. É verdade que depois de domingo as coisas melhoraram: influência de Cosme e Damião; os meninos são bons meninos e ajudam sobretudo aqueles, dentre nós, que têm o coração de criança. O domingo transcorreu familiar e feliz, segunda-feira houve nuvens, na terça-feira brilhou o mais belo sol sobre a face do mar, porém o mundo interior fez-se triste e escuro.

Aflito e vão é o sentimento do homem; e assim também o da mulher. Sim, há pessoas que constroem sua felicidade ― mas à custa de muita tristeza, de muita limitação! Uma vez construída a felicidade, elas se instalam lá dentro para morar; mas então ficam sabendo que é preciso estar sempre tomando cuidado; ser feliz dá muito trabalho e muito aborrecimento, e afinal em troca de quê? Do suspiro sonolento numa tarde de domingo; de um sentimento de segurança afetiva; a amizade velha, em meio à inflação de sentimentos, se valoriza sempre, como um bem imóvel. Há homens que não mudam de mulher pelo mesmo motivo pelo qual não mudam de casa: “nesta aqui eu pago o aluguel antigo” (Mesmo que esse aluguel seja apenas sentimental). Não tenho a menor dúvida, meus queridos senhores, de que a vida é triste; do alto de meus 40 anos esta melancolia vos contempla. Mas antigamente todo orador em toda homenagem tinha uma frase que começava assim e que bastava para dar um tom transcendente ao que ele ia dizer: “Há momentos na vida de um homem...”.

Pois eu digo que há momentos na vida de um homem em que ele tem um tal sentimento desse próprio momento, e do seu prazer, e de sua breve melancolia, que ele se deixa viver como se fosse outra pessoa, e se observa com um vago tédio e uma vaga curiosidade. Sabe, entretanto, que terá saudade deste momento; sabe que amanhã pensará com muito carinho nessa bela mulher e ficará espantado de ter sido diante dela apenas um transeunte vazio e triste, vago, neutro. Uma imagem que o persegue, talvez seu humilde ideal na vida, ser aquele sujeito anônimo que aparece no último plano, na fotografia de cartão postal de uma praça pública de qualquer cidade do mundo. “Assim ficarás ― pensa ele ― na vida dessa mulher; um transeunte que só existe porque em certo momento ia passando...”.

E essa ideia triste de repente o faz feliz; feliz de ir andando, de não ser nada nem ninguém, nem ter nada com ninguém ― mas que sente a vaga doçura de andar e que recebeu a visão da praça com sua árvore florida ao sol ― mulher, linda mulher! ― como um presente do outono distraído, algo que ele não procurou, que estava em seu caminho, que aconteceu e que foi belo e bom.

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