Campanha publicitária dos Correios & Telégrafos-envelope, 20/02/1975. Foto de Francisco Albuquerque. Coleção Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Daqui para a frente, nesta era do e-mail e do WhatsApp, neste tempo de comunicações instantâneas também por escrito, não se sabe bem como será – mas entre os escribas de outras épocas, uns mais, outros menos, sempre teve raízes poderosas o hábito de escrever cartas, muitas das quais vieram a constituir parte relevante da obra de seus autores. Mário de Andrade é apenas o exemplo mais radical de missivista contumaz. Há muitos outros.
No nosso Portal, inclusive, abrigo de um escrevinhador de cartas cuja compulsão epistolar só se pode comparar à de Mário: Otto Lara Resende, de cuja fartíssima correspondência ativa, até agora, apenas uma primeira e suculenta amostra chegou às livrarias, nas mais de 400 páginas de O Rio é tão longe, reunião de cartas a Fernando Sabino. Otto era frequentador tão assíduo de agências dos Correios que após a sua morte a instituição julgou quase obrigação homenageá-lo com a emissão de um selo que circulou em 1994-95.
O escritor mineiro não se limitou a ser carteador inveterado. Fez da carta também assunto de um punhado de crônicas – e em duas delas, "Cartinha de amor brasílico" e "De intenções e amor", quis sublinhar a circunstância de que o Brasil começou com uma carta, a de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, em 1500. Datada, aliás, de 1º de maio – dia e mês em que Otto Lara Resende viria a nascer, 422 anos mais tarde. Ele gostava de insistir, também, como faz em "Confidência e indiscrição", na sua certeza de que “se há uma coisa boa de ler, é carta”.
Em "Uma nação extraviada", na qual crava uma observação dolorida – “Paísinho duro de roer, o Brasil. Será que melhora quando ficar pronto?” –, ele abre, com indiscutível conhecimento de causa, uma exceção nas precariedades nacionais, para a estatal dos Correios, que “tem se comportado bastante bem”. Para quem acaso ache carta uma bobagem, Otto Lara Resende dedica uma crônica, "Timbrada, mas falsa", a uma correspondência fajuta, a célebre Carta Brandi, que, assunto-bomba visando as eleições de 1955, por pouco não melou a chegada de JK à presidência da República.
Já na esfera da intimidade, Antônio Maria, a menos de uma semana do infarto que o levou, relembra em "Do diário (sábado, 10.10.1964)" o bom que foi, certa noite de chuva, voltar ao hotel onde pousava, em Paris, e encontrar à sua espera um telegrama de amor. Menos positiva teria sido a reação de quem recebeu mensagem de Paulo Mendes Campos anunciando o fim de uma relação, não fosse a destinatária tão fria e indiferente a seus arroubos amorosos. “Não posso dizer que não devo a teu calor algumas das melhores horas de minha vida”, creditou ele em "(Carta de separação à garrafa de uísque)". Separação que não deu certo, aliás, pois, como se sabe, aquele seria um casamento vitalício.
Paulo não terá tido mais sucesso, supõe-se, em duas ocasiões em que protestou contra mazelas na sua vida de cidadão. Em "Exmo. Sr. Diretor...", exasperado, ele reclama dos Correios por não conseguir pôr as mãos numa encomenda, vinda da Inglaterra, em nome de sua filha de ano e meio de idade. Em "Gostaria de escrever esta crônica...", não menos indignado, sonha com um Rio de Janeiro onde o ser humano, até por ter nascido antes, valesse mais que o automóvel.
Dois de nossos cronistas, Rachel de Queiroz e Rubem Braga, não escondem o desconforto que lhes traz o peditório de conselhos para engrenar carreira nas letras.
“Noventa por cento das cartas que recebo são de pessoas que desejam confessar sua vocação literária e pedem conselhos ou ajuda”, contabiliza Rachel em "Vocação literária". “Perguntam-me como devem fazer. E eu sei?” Bem mais receptiva é ela com Aspásia, moça que aos 25 anos vê aproximar-se a morte. A cronista se limita, ao longo de "Uma carta", a lhe recomendar que não ceda ao “sentimento destruidor e vazio” de ter pena de si mesma. Mais fácil para ela é abrir os braços para a jovem refugiada Catarina R., que, tendo perdido a família nas mãos dos nazistas, veio da Europa para recomeçar a vida no Brasil. “Se acomode, se faça de casa”, acolhe Rachel em sua "Carta para Catarina".
A escritora cearense, volta e meia, faz de sua crônica uma tribuna de reivindicação e protesto – como na "Carta aberta aos juízes do Supremo Tribunal Federal", em que junta sua voz ao coro de pedidos de reparação material para a dupla injustamente condenada e encarcerada no célebre “crime dos Irmãos Naves”, em Minas Gerais. Não hesita em abrir sua coluna a reclamações e testemunhos de cidadãos inconformados com a ineficiência do serviço público. Em "Correios e Telégrafos", Rachel dá ressonância, entre muitos outros, aos relatos de gente que, anos, ou mesmo décadas depois, vive ainda a irremediável frustração de sonhos amorosos, pois seus pedidos em casamento, esperançosamente postados, jamais chegaram às mãos e corações de suas amadas.
Rubem Braga, tanto quanto Rachel de Queiroz, via sua caixa de correio entupir-se de pedidos de conselhos e orientação para a vida literária. “Não me escrevam!”, roga ele em "Remorsos", e explica: “Sou um homem desorganizado e desorientado, sem horário nem lei, impontual e incivil.” Por isso não chega a lamentar que metade das cartas recebidas na quinzena anterior tenha sido inadvertidamente jogada no lixo: “Me poupem mais um remorso na consciência já abarrotada.” Em "Recado ao Sr. 903", ele reconhece o direito que tem o vizinho em questão de reclamar do barulho gerado em sua furna domiciliar. Mas sonha com um mundo em que vizinhos bateriam à sua porta não com reclamações, mas desejosos de se incorporar à alegria da música, do pão e do vinho.
Se estivesse ainda entre nós, o casmurro Sabiá da Crônica talvez visse com simpatia a comunicação instantânea que a internet veio permitir – ele que, nas linhas de "Distância", seis décadas e meia atrás, pôs em dúvida a validade de uma jura de amor que, depois de viajar dias e dias nos meandros dos Correios, talvez já sofra de obsolescência sentimental quando chega a seu destinatário. “Quem sabe se no momento em que é lida [uma carta] já não poderia ter sido escrita?”, indaga Rubem Braga. “A carta não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentia na semana passada.”
Mas é o mesmo Braga que em "Cartão" nos fala de uma ocorrência à primeira vista miúda, porém capaz de adoçar seu coração. “Recebo um cartão de Paris”, anuncia ele, e esclarece: “Não é de amante nem namorada, é apenas uma recente amiga; mas como foi gentil em se lembrar de mim, em me mandar seu abraço, e como está linda na fotografia!”. Não precisa de mais para comemorar: “Ganhei meu dia, ganhei minha noite”.