A empregada me fez uma pergunta, eu respondi distraído e aconteceu a calamidade: toda a correspondência que recebi nos últimos 15 dias foi jogada fora. Uma parte eu ainda não lera bem, e estava esperando uma hora calma para responder a tudo... Havia muitas cartas de leitores — e me lembro, com remorso, de uma em que um rapaz paralítico me mandava um conto para saber minha opinião e de outra em que um velho amigo me fazia um pedido fácil de atender. Detesto sinceramente dar opinião sobre trabalhos literários, mas é claro que eu deveria ter respondido a carta. Quanta mensagem afetuosa, quanta pergunta inquieta, quanto apelo a gente deixa sem resposta, na confusão e na pressa desta vida! Não responder a cartas faz parte, classicamente, da falta de educação do brasileiro e sou um brasileiro tão ruim quanto qualquer outro. Apenas o fato de escrever nos jornais aumenta e agrava esse defeito horrível. Cada um de nós, cujo nome está sempre aparecendo nas folhas, tem de ser um pouco Júlio Louzada, mesmo quando, e este é o meu caso, a vocação é nenhuma.

A vontade que tenho é de pedir cinicamente e, entretanto, humildemente, a todos os leitores ingênuos que julgam que de mim pode partir alguma orientação para sua vida ou seu trabalho: não me escrevam! Sou um homem desorganizado e desorientado, sem horário nem lei, impontual e incivil.

Escrevam para o senador Costa Rego, para o poeta Schmidt, escrevam para Antônio Maria ou para o professor Maurício de Medeiros, para Samuel Wainer ou para Carlos Lacerda, mas me poupem mais um remorso na consciência já abarrotada. Minha própria vida está toda errada e atrapalhada, e não tenho autoridade nenhuma para dar opinião sobre nada. Eu sou fundamentalmente, como declarou depois de me examinar por algum tempo o sr. Otávio de Souza Dantas — um incompetente. Não me orgulho disso: sou humilde por dentro de mim mesmo, tenho uma grande alegria quando posso ajudar uma pessoa e não sei sentir desprezo por nenhuma criatura humana. Em minha vida inteira tenho recebido dos outros muito mais do que tenho dado: sempre, sempre tive a ajuda de um amigo ou de um desconhecido, todo o mal que me foi feito sempre foi muito menor que o bem que recebi sem merecer. Se poucas mulheres me amaram, quantas me ajudaram a viver com um sorriso ou uma palavra boa e quanto conhecido quase indiferente se mostrou, na hora ruim, um amigo dedicado e generoso! Acredito sinceramente na bondade humana, porque nas minhas horas mais desgraçadas sempre senti a mão no meu ombro, a mão do meu semelhante e meu irmão. Nunca paguei nem uma parte mínima de tudo que me deram — e quanta afeição boa não deixei amargar, de quanta boa ternura me afastei, não por ingrato, mas por inquieto ou distraído, não por mau, mas por errado, incerto, vago.

No monte de cartas que a empregada inocentemente jogou ao lixo foram-se apelos, gestos de amizade, pedidos e ternuras. Desses, pelo menos, posso pensar que o acaso os perdeu; são remorsos de menos. Coço a cabeça, visto o paletó e saio para a noite me sentindo menos responsável pela grossa e vária tristeza desta vida.

rubem-braga
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