Noventa por cento das cartas que recebo são de pessoas que desejam confessar sua vocação literária e pedem conselhos ou ajuda para chegarem ao exercício dessa vocação.
A primeira constatação, bastante curiosa, que se faz diante desses correspondentes, é a seguinte: quase todos os que anseiam por escrever, não têm, de maneira nenhuma, capacidade para escrever. Nada de dom natural, nada de facilidade de palavra escrita, nada de espontaneidade. Acho que eles querem escrever não porque se sintam dotados para isso, mas porque acham bonito escrever. Querem ser escritores, ou poetas, ou dramaturgos, ou jornalistas pelo glamour que a profissão literária ainda conserva (muitos ainda se chamam, e o que é pior, me chamam, de “beletrista”...) – glamour cuja força surpreende, ante a concorrência fortíssima de outras seduções modernas – o palco, o rádio, o cinema.
O fato é que considerável proporção dos que sonham escrever não querem escrever propriamente, querem aparecer. Pelo menos é o que confessam: “sonho em ver meu nome em letra de forma”; “meu ideal é ser um escritor (ou escritora) conhecido por todo o Brasil”. “Ah, ter o meu nome na boca de todos e aparecer nos grandes jornais!” – suspira uma mocinha.
Há também os frustrados, os que passaram por uma decepção ou uma degradação e querem transferir para o papel as suas amarguras. “Minha história daria um romance de quatrocentas páginas”. “Tinha vontade de escrever meu caso, podia assim me aliviar dos sofrimentos que passei”; “vai este soneto, onde confesso as minhas mágoas de jovem...”
Há os patriotas, que querem cantar as belezas do Brasil, como há os cívicos desejosos de difundir e proclamar o seu verde-amarelismo.
Há os de tendência eclética-espiritualista (contingente grande, aliás) que desejam pregar ideais religiosos, mas aos quais não satisfaz nenhuma das confissões militantes. Querem uma religião própria, um mosaico de todas – pedem ao protestantismo o livre exame, ao espiritismo a reencarnação, ao catolicismo a pompa do cerimonial e o poético culto da Virgem, aos teosofistas o vocabulário hermético e, por isso, fascinante. No fundo, o que se sente nesses neopregadores é a tendência muito moderna para a supervalorização do ego; desejam da religião o que lhes dá importância, o que os coloca no centro do mundo, acima do comum rebanho.
Há também o grupo dos que obtêm êxito em outras profissões ou vocações, e aspiram à glória literária como coroa dos seus triunfos. É muito comum a gente ver – digamos, um herói militar vitorioso num golpe de mão – sair do silêncio em que viveu sempre e derramar em colunas de prosa subliterária a insolência do seu triunfo. Parece que a euforia da vitória despertou o literato adormecido, pois tudo leva a crer que a raiz do fenômeno é esta: toda criatura humana tem, dentro de si, o literato que dorme. Basta um nada – um copo a mais, uma inibição a menos, a sensação de segurança que o êxito proporciona – ou uma saudade, uma evocação, um espetáculo de rua, para despertar o tigre beletrista. Não há comerciário, nem marinheiro, nem bacharel, nem operário, nem matuto, nem ninguém, que não padeça da sua pequena nostalgia literária, quando não tem os seus pruridos ativos: e no fundo do coração não abrigue a ideia de que, se tivesse querido, se tivesse experimentado... se tivesse ousado!
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Mas eu falava propriamente dos candidatos a escritores, poetas e jornalistas que pedem ajuda dos redatores e colaboradores das grandes revistas e jornais. Como disse, são muitos, são legião. Infelizmente a esmagadora maioria deles todos – deixem-me ser franca, que a franqueza às vezes é um imperativo – a maioria o que mostra é a mais desnuda indigência de qualidades literárias ou artísticas. E a esses, que se pode responder?
Quanto à minúscula, à infinitesimal minoria dos realmente dotados, a resposta ainda é mais difícil. Porque a verdade, meus caros, é que não há receita para o trabalho artístico. Há técnica (e disso podem falar outros, não eu, simples autoditada que nunca passou de caloura no nosso penoso ofício) – mas a técnica é apenas um acessório do bom inicial. É como o caso do cantor: não adianta aprender teoria musical, nem ter excelentes professores, nem se dedicar dia e noite – se ele não tem o básico – a voz.
Assim, para escrever, para poetar, tem que haver essa coisa que lhe bota a letras na mão e as palavras na boca. As letras certas e as palavras certas. Perguntaram-me como devem fazer. E eu sei? Como disse, não há receita. Não falo assim por egoísmo, ou secura de coração, ou por antecipada inveja. Mas porque é verdade: este nosso ofício não tem professores. Aliás, se os tivesse, não seria eu, pobre de mim, a mestra indicada. Escrever certo você aprende no colégio, mas escrever bem só seu coração, sua cabeça, eu estômago – ou mesmo a sua alma, podem lhe ensinar.
Regras servem para policiar o que está feito, não para criar o que não nasceu. E depois, se você tem mesmo dentro de si aquela coisa mágica, pode romper todas as regras, desacatar todas as barreiras: e se o êxito ficar do seu lado, eles inventarão novas regras, desenharão um mapa novo, traçando outros limites – que lhe caibam dentro...