Ouça a crônica de Otto Lara Resende na voz da pesquisadora Mafalda Lalanda.

Gosto de lembrar que o Brasil começou com uma carta. Sim, a nossa certidão de idade é a carta de Pero Vaz de Caminha a Sua Majestade Dom Manuel, o Venturoso. Tudo azul com bolinhas brancas, a felicidade era tal que começou aí o ufanismo. Avant la lettre, digamos. Era aqui o Eldorado, o paraíso terrestre. Canaã, onde corre leite e mel. Meio puxa-saco, Pero Vaz deitou e rolou. Era uma alma superlativa, o escrivão da armada. Caprichou na cartinha de amor.

E dançava conforme a música. No fundo, o primeiro ghost-writer que pisou em nossas plagas. Pedro Álvares Cabral, se não era analfabeto, era quase. Tudo de acordo com os costumes da época. Parte do otimismo de Caminha pode ser debitado, ou creditado, ao mês de maio. Maio até hoje, com poluição e tudo, tem uma vibração e um encanto que nos põem em paz com a vida. Veja lá a data da carta: 1º de maio de 1500. Não podia ser diferente, podia?

Quem já foi a Porto Seguro, que está na moda, pode imaginar aquele pedaço de céu na terra há 492 anos. Virginal, virgiliano, virente. Tudo verde, ou verdejante, sob o céu azul. Dá pra ser pessimista? Além do mais, o signo é Touro. Alto austral. Expedida a carta por via de caravela, não sei em que dia Dom Manuel a leu. Ou até se leu. Deve ter lido. O homem era venturoso. Tinha uma sorte danada. O fato é que depois a carta sumiu. Só apareceu em 1817, na Corografia brasílica, de Ayres Cazal.

Eu já vi essa carta que assinalou o nosso destino com o cristal sem jaça da felicidade. Está lá na Torre do Tombo, em Lisboa. Não quero contar vantagem, mas até já peguei nela. Uma emoção, pegar naquela relíquia. Único país que começou com uma epístola, devíamos ser um povo que adora cartear. Emblemático, não acha? Ou simbólico, sei lá. Mas o que parece ter ficado nas dobras da nossa alma é o fato de a carta ter se extraviado. Por 317 anos!

Era nisto que eu pensava, na fila do correio de uma agência da zona sul. O correio hoje tem mil atribuições. Recebe conta de luz e telefone, manda dinheiro, importa artigo estrangeiro. Vende até raspadinha. A fila atulhava a agência e coleava pela rua, imensa. Sabe quantos funcionários estavam na tal agência? Uma única funcionária! E trabalhando, coitada, daquela forma artesanal. Juro que se o Caminha previsse isso, tinha sido menos otimista.

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