Gostaria de escrever esta crônica em forma de carta, mas não sei a quem me dirigir. Ao sr. chefe de Polícia? Ao sr. Edgar Estrela? Ao mui digno prefeito do Distrito Federal? Ao presidente da república? Aos senhores deputados e senadores? Não sei, há uma confusão absurda quando se trata de responsabilizar alguém neste país pelos acidentes de tráfego do Rio de Janeiro. Talvez deva queixar-me ao bispo, isto é, ao cardeal, que tem em suas mãos o poder espiritual sobre os cariocas, e que, de certo, se interessará por essas almas que diariamente são enviadas ao outro mundo sem os sacramentos derradeiros da igreja.

O número de acidentes de tráfego no Rio não chega a ser uma vergonha, que é uma flor da civilização; é uma barbárie, que é exatamente a incompetência de uma sociedade primitiva de se organizar em princípios de respeito à vida humana.

Deem fuzis aos selvagens e eles se destroçam; deem automóveis a uma sociedade mal arrumada e as pessoas se arrebentam e se matam. Porque o automóvel, entre nós, é uma arma de que conhecemos apenas o manejo mecânico, e de que ignoramos o funcionamento humano, como um objeto que deve servir ao homem, sem aniquilar, ferir ou mesmo incomodar o seu semelhante.

Deus criou o homem, depois o automóvel, mas nesta aloprada cidade do Rio parece que o automóvel tem primazia sobre o gênero humano. A constituição fala no homem, mas o automóvel continua a violentar impunemente a primeira das liberdades, que é a de viver.

Dá uma certa raiva falar nessas coisas por que, muito mais contundentes que as palavras; elas estão todos os dias nas ruas e nos noticiários, e não há uma só autoridade nesta república que se julgue na obrigação ou no direito de tomar uma providência. Os homens públicos querem nomeada, querem aparecer nos jornais, querem comissões, querem viagens ao estrangeiro e tranquilidade. Uma providência é demais para um país tropical. Muito mais fácil que resolver alguma coisa é a farolagem oca das palavras, honraria que qualquer débil mental pode conquistar na chefia de um cargo. Um burrão preguiçoso qualquer, à frente de um serviço público, sempre encontra um bando de safados para lhe dizer a todo momento que suas iniciativas são geniais. E, muito mais depressa, ele o acredita.

Matem os bondes, os automóveis, os caminhões, os lotações, os ônibus. Azar dos que morrem. O país nada tem com isso, o país é essencialmente oratório e o tempo já é pouco para a elucubração dos discursos.

paulo-mendes-campos
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