Bonde com direção ao Silvestre, Santa Teresa, Rio de Janeiro-RJ, 1890 circa. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Além de romancista graúdo, e sabe disso quem leu Triste fim de Policarpo Quaresma, ou Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto era um cronista dos bons – mais do que isso, era um cronista puro-sangue, desses que nos proporcionam a gratificante sensação de estarmos sentados a seu lado num meio-fio, ouvindo-o desenrolar o novelo de uma conversa boa. Aliás, tem tudo a ver a imagem do meio-fio, pois o Lima era um homem das ruas – coisa rara no universo literário de seu tempo, as duas primeiras décadas do século passado, quando escritor era quase sempre um homem de gabinete.
O cronista que agora chega ao nosso Portal tinha os olhos permanentemente postos em sua cidade, o Rio de Janeiro, com sua vida e seus personagens. Apaixonado por ela, nem por isso deixava de ver suas mazelas, contra as quais investia com humor, ironia, às vezes com sarcasmo. Caso de "Queixa de defunto", sobre as más condições da rua que levava um defunto rumo ao cemitério de Inhaúma, e cujo pavimento, de tão trepidante, fez ressuscitar um morto. Em "As enchentes", uma tempestade de verão o deixa indignado com as autoridades municipais. É como se a inundação o obrigasse a se levantar do meio-fio e incorporar tons de editorialista: “Uma vergonha!” Mal sabia o Lima que o problema das enchentes no Rio iria sobreviver indefinidamente à sua morte, ocorrida em 1922.
A criação de um Conselho Municipal, em 1918, o faz desembainhar sua mais cortante ironia em "Até que afinal!...," ao se dar conta de que o novo órgão público, em vez de melhorar a vida dos cariocas, começou criando mais impostos. E o que dizer daquela autoridade municipal que, vinda de fora mas instalada na cidade fazia muitos meses, passou recibo de não conhecer uma rua famosa como a do Ouvidor. A indagação que Sua Excelência fez a um guarda virou título da crônica: "Que rua é esta?".
As reclamações do Lima se tingem às vezes de alguma rabugice, sem com isso afugentar o leitor. Em 1915, por exemplo, ele torce o nariz para o novo prédio da Biblioteca Nacional, inaugurado em 1910: parece um “palácio americano”, avalia o cronista em "A biblioteca", sentindo-se intimidado ao pé de “escadas suntuosas”. Dois anos mais tarde, reage contra a novidade americana dos arranha-céus, “monstruosas construções”, “torres babilônicas” que até podiam fazer sentido na exiguidade da ilha de Manhattan, escreve ele em "Sobre o desastre", mas não nas generosas vastidões do Rio. O tom não é muito diferente em "O cedro de Teresópolis", de fevereiro de 1920, em que a notícia de que alguém quer derrubar uma bela árvore faz espraiar-se a sua indignação contra os que, no Rio, buscavam estender a cidade rumo a uns “areais” – leia-se: Copacabana, ligada a Botafogo, desde 1892, por esse que hoje é conhecido como Túnel Velho.
O tema das agressões à flora está também em "A derrubada", crônica na qual a boa conversa de Lima Barreto principia falando da anunciada remoção das grades do Passeio Público, avança pela denúncia do sacrifício de “árvores velhas, vetustas fruteiras”, das quais “dentro em breve não restarão senão uns exemplares” – e então retorna às grades, para que o cronista possa uma vez mais alfinetar seu desafeto Coelho Neto, escritor passadista que, segundo o Lima, não hesitara em sacar cânones gregos para justificar a remoção daquelas proteções metálicas do Passeio Público.
A pendenga entre os dois escribas, por sinal, transbordava para outros campos, aí incluídos os de futebol – ou melhor, football, grafia inglesa que então se adotava no Brasil para designar o esporte para aqui transplantado, não muitos anos antes, por Charles Miller. Fica difícil saber até que ponto foi por aversão a Coelho Neto, derramado admirador da nova modalidade esportiva, por ele enfeitada com eflúvios helênicos, que Lima Barreto, em "Uma partida de football", preferiu falar em “jogo dos pontapés na bola”. Não surpreende que, quase um século depois (em 2010), cacos da porfia tenham rendido um livro, Lima Barreto versus Coelho Neto – Um Fla-Flu literário, de Mauro Rosso. Naquela crônica, o autor deplora também o comportamento das “torcedoras” (por se tratar de neologismo, ou simplesmente por desprezo, a palavra ganhou aspas), cujo vocabulário, “rico no calão”, só encontrava similar na fala de “carroceiros do cais do porto”.
Torcedoras ou não, as mulheres fizeram correr rios de tinta da pena de Lima Barreto, por elas fascinado não apenas como tema de escrita. Só não precisavam, reclama ele em "Chapéus, etc.", ocupar suas cabeças com “semelhante cobertura”, uns chapelões enormes. Ao vê-las em desfile na avenida, o escritor põe-se a meditar sobre o sobe ou desce das saias e decotes – e aí lhe ocorre uma ideia: uma comissão encarregada de decidir o que no corpo das beldades transeuntes poderia ou não ser visto. Se na Câmara dos Deputados existe uma comissão para tratar de questões sociais, pergunta ele em "Modas femininas e outras", por que não poderia haver uma para deliberar sobre o comprimento de saiotes & decotes?
O bom humor da sugestão é o mesmo que o cronista põe em campo em "Amor, cinema e telefone", delicioso texto no qual, fingindo acreditar que “o amor deve ser combatido”, ele pede a proibição de tudo o que possa fazê-lo germinar. Em especial, o escuro do cinema e o telefone em que vê moças e senhoras penduradas o tempo todo. Numa demonstração de que nem sempre valeria a pena ser escravo da coerência, o mesmo Lima Barreto bem humorado, em "Esta minha letra..." – crônica que além de ler se recomenda ouvir neste Portal, na interpretação do ator Luiz Octavio Moraes –, começa reclamando da ruindade de sua caligrafia, capaz de produzir erros não só gramaticais. Olha então para a moça a seu lado no bonde, nem bela nem feia, dona, porém, de letra invejável, no caderno que tem aberto no colo. “E se eu me casasse com ela?”, devaneia Afonso Henriques de Lima Barreto, sonhando com o que, mesmo num bonde, até que poderia não ser tão passageiro assim.