Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janediro, Agir, 2004, vol. I, pp. 194-195. Publicada, originalmente, na revista [Careta], de 24/04/1915 e, posteriormente, no livo Marginália. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 221.
Tendo sido nomeado prefeito de polícia o doutor Secundino, chefe político muito estimado em Tefé, estado do Amazonas, trouxe ele para seu delegado auxiliar o doutor Fagundes, que há tantos anos não saía daquela longínqua localidade brasileira.
Em toda a parte, os cargos policiais são dados a quem conhece perfeitamente as localidades que vão policiar; entre nós, porém, esse critério obsoleto não é obedecido, de modo que o doutor Fagundes tomou conta do seu cargo, para felicidade da população carioca e da cidade do Rio de Janeiro, que ele completamente desconhecia.
Fagundes, apesar dos seus trinta anos de Tefé ou Ega, não era bronco e tinha as suas luzes; procurou, portanto, exercer o seu cargo com a máxima honestidade e clarividência.
Pôs-se logo nos primeiros meses a estudar as coisas policiais e consultou com mão diurna e noturna as obras do doutor Elísio, principalmente a gíria da gatunagem que o atraía, tanto pelo lado filológico como pela sua utilidade policial.
Como bom alto funcionário de polícia, Fagundes não deixava o automóvel. Ia para a prefeitura de polícia de automóvel, voltava para casa de automóvel. Se fazia compras com Mme Fagundes... Que interessante senhora! O seu chapéu tinha dois metros de altura e uma tonelada de enfeites... E a saia? Na cintura, fazia um chumaço, que bem parecia um salva-vidas aperfeiçoado... Dizíamos: se fazia compras com Mme Fagundes, o auto parava à porta das casas de fazendas, dos armarinhos, dos armazéns, das casas de chapéus, açougues, etc.
Ao teatro e às diligências, Fagundes só ia de automóvel; e era assim.
Ao fim de seis meses, Fagundes estava de fato inteirado da polícia científica do doutor Elísio, conhecia os regulamentos e gozava com requintado prazer a velocidade inebriante de um auto.
Não correra pelo seu cartório nada importante, nada de chamar a atenção do público e dos jornais, de modo que a alta autoridade, se não recebia elogios, não recebia ataques.
Fagundes desfrutava o cargo com a mansidão de uma jiboia que digere o boi que engoliu. Juntava dinheiro até, pois nem comprava jornais. As redações se encarregavam de mandá-los de graça a Sua Excelência.
Ele os lia no seu gabinete com o vagar provinciano, especialmente as notícias de polícia. Lendo-os, se por exemplo caía-lhe sob os olhos “ontem, houve um incêndio na Rua da Misericórdia” – logo ele perguntava ao contínuo, a um guarda, ao escrivão: onde é essa rua? Ensinavam-lhe e ele continuava a ler. Certo dia, Fagundes foi levar um alto personagem a bordo e resolveu, na volta, subir a Avenida a pé. Foi vindo, olhando sempre os guardas que o cumprimentavam respeitosamente. Subia, cruzando uma porção de ruas estreitas.
Chegou a uma destas, em que havia um movimento extraordinário. Pensou em alguma grève, pensou em revolução. Aproximou-se de um guarda e perguntou:
– Que rua é esta?
O guarda, descobrindo-se a meio, respondeu:
– Vossa Excelência não sabe? É a rua do Ouvidor.