Amor, cinema e telefone

 

Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, pp. 106-107. Publicada, originalmente, na revista Careta, de 24/01/1920 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 105. 

Tenho em grande conta a eficácia das medidas legislativas, administrativas e policiais que diretamente e indiretamente tendem a civilizar a sociedade. Temos visto o que acontece com o jogo de patota, que todos os nossos códigos presentes e passados condenam, o que não tem impedido que virtuosos cavalheiros dele tenham vivido durante meio século, eduquem regiamente filhos e filhas, formando aqueles e casando estas nas rodas mais governamentais possíveis, merecendo, com toda a justiça, serem considerados de exemplares pais de família, por toda a gente. Tudo nesta vida é o sucesso. Pode-se começar por este ou aquele meio defeituoso ou condenado; mas, se se obteve sucesso, a massa está disposta a admirar o audaz bem-sucedido.

Estas reflexões não são próprias do assunto, tendendo elas unicamente a mostrar que a ação da polícia é sempre eficaz para a moralização dos costumes.

Até agora, ela não se tinha voltado para os cinemas, deixando de imitar a Liga pela Moralidade, que tem uma polícia secreta para julgar, sob o ponto de vista de sua moral particular, os films que são corridos nos nossos cinemas.

Não posso auxiliar a nossa polícia legal, porquanto desde muito que não vou a cinematógrafos. Não posso suportar essas hediondas damas americanas: Ketties não sei o quê, Thedas; e os respectivos cavalheiros: Johns, Hamiltons, Tigres de toda a sorte. As mulheres têm uma carnadura de gesso ou mármore artificial e uns gestos duros e angulosos; os homens, com uns enormes olhos que se esbugalham mais no patético, têm um mento quadrado de sioux, muito antipático.

E todas essas fitas americanas são brutas histórias de raptos, com salteadores, ignóbeis fantasias de uma pobreza de invenção de causar pena, quando não são melodramas idiotas que deviam fazer chorar as criadas de servir de há quantos anos passados.

Apesar disso tudo, é na assistência delas que nasce muito amor condenado. O cadastro policial registra isso com muita fidelidade e frequência. “Foi”, diz uma raptada, “no Cinema X que conheci F. Ele me acompanhou, até”.

Ela omite alguma coisa que houve antes do acompanhamento. Tem um apelido náutico...

Ainda outro dia, no inquérito a que a polícia procedeu, sobre aquela tragédia conjugal da Rua Juparanã, veio saber-se que a esposa culpada conhecera o seu sedutor no Cinema Z.

O amor, ao que parece, é como o mundo, nasce das trevas; e o cinema não funciona à luz do sol, nem à da eletricidade, nem à da lua, que, no velho romantismo das falecidas Elviras, Grazielas e outras, lhe era tão favorável.

Outro aparelho bem moderno que está sendo fator constante da dissolução da família é o telefone.

Um inquérito que corre nos subúrbios sobre um suposto suicídio, por envenenamento, vem mostrando às claras como o telefone é assim como o “livro e aquele que o escreve”, no caso sagrado de Paulo e Francesca da Rimini. É e vem sendo o medianeiro de amores ilícitos e criminosos.

Não há dia, hora, minuto, em que eu entre nas casas de negócios da minha vizinhança, que não veja uma moça, uma senhora atracada ao respectivo telefone. Falam baixo e eu fico pensando cá com os meus botões: que tolice irão fazer nos dias que conversam através de um fio de cobre?

O amor deve ser combatido. Ele é o causador, parte primacial, de todos os crimes, violentos ou não, da loucura, do suicídio, do jogo e até, muitas vezes, da embriaguez e intoxicações de toda a sorte.

Todo instrumento, aparelho que facilita a sua obra, deve ser proibido, acho eu.

Têm a palavra as nossas autoridades.

lima-barreto