Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, pp. 316-317. Publicada, originalmente, no periódico A.B.C., de 2/02/1918.
Seria preciso consultar todos os curiosos sabedores das cousas desta cidade para ao certo se avaliar desde quando esta vasta e heroica São Sebastião clama e chora por melhoramentos, higiene, água, calçamento, etc., etc. Porquanto, aferindo pelo que temos ouvido durante a nossa curta existência, esses queixumes e lamentos devem datar dos seus inícios, mesmo talvez desde quando ali pelas bandas do Pão de Açúcar ela surgiu incipiente e tosca.
Julgamos até, pois tão forte é essa nossa suposição, que, ao transferir dali para o morro de São Januário o núcleo da cidade real, Mem de Sá solene e honesto, houvesse mandado pôr, nos finais das sesmarias que ia concedendo, algumas tocantes palavras de súplica a Nossa Senhora e ao Menino Jesus, implorando-lhes a graça e a ajuda para aqueles que viessem povoar os brejos que ele via se estender pela baixada afora e pra longe e muito longe.
De resto, ao depois dele, os outros que lhe sucederam – boa, leal e heroica gente portuguesa – andaram por estas terras a rezar a Deus Todo-Poderoso para que ele desse aos homens bons da cidade a doce esmola de alguns quartilhos d’água, a alentadora dádiva de duas ou três estradas razoáveis, por onde pudessem vir as abóboras da Fazenda dos Padres e os camarões de Iguaçu.
E assim foi por tão longo trato de tempo que faz crer que isso mais não fosse senão aquela lamurienta semente de Mem de Sá que germinou, cresceu e frutificou. Frutificando, frutificou bem, pois embora, por vezes, pela cidade e recôncavo além, lavrassem a bexiga, as sezões, a “carneirada” e o cólera, eles, os antigos, e nós, os modernos, continuamos em face de tais flagelos a rogar pacientemente a Deus, com alguma fé, e a pedir humildemente aos reis, com muito ceticismo, socorros e providências.
Mas, não é em vão que a água mole e plástica bate incessante no rochedo duro e forte: ela cai uma, duas, dez, mil vezes, amolga aqui, arranha ali, por fim... fura. E, também, furou a indiferença dos deuses e dos reis o nosso melífluo queixar de três séculos e meio. Deus e o Congresso Nacional nos deram o Conselho Municipal.
Ao dizermos que nos deram o Conselho Municipal – bem parece equivaler a afiançar que íamos receber água, calçamento, luz e o mais em abundância.
Se houver acaso quem tenha dúvidas, pese bem os relevantes serviços que esse conselho, cujo mandato começou já, vai prestando a esta cidade.
Ele trata com fervoroso carinho a nossa heroica metrópole, tanto assim que lhe impôs novos tributos; ele a estima tanto que quer provocar a sua decadência comercial e industrial; ele a ama tanto que só trata de despovoá-la com as suas posturas draconianas; ele adora tanto o povo da cidade que só se preocupa em encarecer-lhe a vida...
Todos vós que amastes esta cidade, Sá, Mem e Estácio, Vaía Monteiro – o Onça, Bobadela, Passos e outros – exultai, porque afinal ela tem o que precisa: um Conselho Municipal que quer o seu total aniquilamento.
Para isso ser obtido, foi preciso que fossem procurar os seus vereadores em todo o Brasil, menos no Rio de Janeiro.