Abraço, São Paulo-SP, 1953 circa. Foto de Alice Brill/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Temperamento, feitio, inclinação natural para a visada realista que marca sua prosa – o fato é que Rachel de Queiroz dizia não sentir saudade do que quer que fosse. Nada, nenhuma, reforçava ela. Talvez nem mesmo da glória precoce que experimentou aos 19 anos, com a publicação de seu primeiro livro, o romance O Quinze, ou do dia de 1977 em que se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. “Não tenho saudade de nada”, conta Rachel na crônica intitulada, exatamente, “Saudade”. “Nem da infância querida”, acrescenta, “nem mesmo de quem morreu”. Para surpresa de muitos, “nem sequer do primeiro dia em que nos vimos” – ela e o médico Oyama de Macedo, seu segundo marido e maior amor: “Considero uma bênção e um privilégio esse passado que ficou atrás de nós, vencido.”
Nesse particular, Rachel de Queiroz parece situar-se em polo oposto ao do confrade Rubem Braga, cuja prosa ressuma com frequência uma saudade que por vezes chega a dispensar um objeto nítido. “Aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo”, escreve ele em “A viajante”. Em 1955, vivendo em Santiago, no Chile, visitou Buenos Aires, onde estivera por três meses, nove anos antes. “Não tenho saudade desse tempo”, afirma ele em “Buenos Aires” – para em seguida desdizer-se: “Ou pensei que não tivesse”. Sai pela cidade em busca de referências que lhe ficaram na memória, e se decepciona, pois muita coisa mudou ou simplesmente desapareceu. Eis, porém, que para ele outra Buenos Aires “nasce, a de hoje, e sinto timidamente carinho” – sentimento forte o bastante para lá adiante, quem sabe, traduzir-se em saudade. Em outra crônica, “O morro”, Rubem contempla, na paisagem do centro do Rio, “uma velha amizade” de seus olhos: o morro de Santo Antônio, condenado ao desmonte, para que de sua matéria se faça o Aterro do Flamengo – e, já nostálgico, sofre por antecipação: é como se seu coração, “velho muar sentimental”, fosse perder, “com aquele bonito capim” que reveste o morro, “um pasto de saudade e lembranças queridas”.
Mestre do humor e do lirismo, Paulo Mendes Campos se valeu de um e de outro em crônicas nas quais se fala da saudade. Em “(Carta de separação à garrafa de uísque)” – assim, entre parênteses –, o leitor que não tenha atentado ao título pode ter a impressão de que ele está se despedindo de uma namorada, da qual se sente devedor de “algumas das melhores horas” de sua vida. “Foi”, relembra o missivista, “amor à primeira vista”, mas “aquela noite, na boate, custou-me engolir-te”. Por ela, a amada agora demitida, ele chegou a brigar, fez os piores papéis, prejudicou sua saúde. “Falta-me dinheiro para sustentar-te”, alega – e desfere a estocada: “Não há outro jeito senão uma separação que, de minha parte, deixa muitas saudades". A crônica é de 1953, e o missivista, previsivelmente, não iria além das palavras. Como se sabe, há separações que não dão certo – e assim foi entre o cronista mineiro e o destilado escocês.
A galhofa ficou de lado nas três crônicas nas quais Paulo Mendes Campos se deteve num episódio para ele doloroso, de consequências vitalícias – os três anos que passou num colégio interno, dos 12 aos 14. A experiência foi tratada em duas crônicas, “O colégio”, escrita aos 25, e “Quando voltei ao colégio”, aos 30, e também num poema, “Fragmentos em prosa” (“A saudade à hora do crepúsculo estragou-me todos os outros crepúsculos”), antes de encontrar expressão definitiva em “O colégio na montanha”. “A misteriosa saudade do colégio é cheia de raiva e desprezo”, resume ali o cronista, então nos seus 43. “Estou cada vez mais preso àquele tempo, mas é porque as feridas da idade madura estavam contidas nele, como um câncer incipiente. Para mim, as férias vão terminar a todo instante; e eu volto sempre, a todo instante, ao medo infindável.” Saudades de outra natureza, gratificantes, inspirariam Paulo Mendes Campos em “De repente”, crônica que, sem nenhum favor, é um poema em prosa (e nessa condição figura, aliás, nos seus “Melhores poemas”, editados pela Global em 2015). Em pleno burburinho do centro do Rio, em 1957, o poeta e cronista sente doer-lhe subitamente “uma saudade magnífica de Paris”, cidade onde passou uma temporada no final dos anos 1940, “uma saudade sem jeito, feérica”, e a registra numa página impecável.
Também ele literariamente marcado por experiências de infância e adolescência, o pernambucano Antônio Maria, em “Meus primos”, deixa que a memória o devolva, nostálgico, ao antigo engenho de seu avô, onde passava as duas férias escolares do ano, enturmado com uma fartura de meninos e meninas do seu sangue. Lembranças das quais, já entrado nos 30, ele não abre mão: “São estas as pobres e perdidas recordações, embora sem ternura para os outros, de que me sirvo nos dias de saudade”. Revisitar, na idade adulta, as lembranças que guardou daqueles primos vem a ser, explica, a sua “única maneira de voltar ao moleque da campina, que não sabia nada e era rei de tudo”. Que os leitores, pede, não façam pouco de suas “humildes saudades”; em vez disso, tratem de buscar, cada qual na sua meninice, “lembranças parecidas com estas, e elas vos restituirão um certo apego, um pouco de bem-querer aos dias de hoje, tão sem graça em sua maioria”.
É também a saudade que leva Antônio Maria a constatar, em “A noite em 1954”, que no Rio estavam “murchando” os “lugares musicados”, numa “desalegria que se agrava de ano para ano”. Ela está presente, ainda, em “O encontro melancólico”, em que dois ex-amantes, num bar, experimentam o desconforto que agora ocupa o lugar de um amor vencido. “Que saudade os trouxera ali?” – indaga o cronista, e não deixa dúvidas: “Nenhuma. Vieram, simplesmente, porque um gostaria de saber, no coração do outro, a falta que estava fazendo.”