Abro porta, fecho porta, da rua, do apartamento, tranco-me no quarto. Breve, isolado do mundo por paredes, lençóis e escuridão, procuro o sono cercando-o de ideias sem irrisão, balsâmicas.

Os pés recusam as cobertas. Levanto-me, corro as cortinas. Está quente demais. O corpo como se houvesse adquirido uma lucidez própria, permanece infrangível ao escuro, matéria do sono. Aos poucos, um outro tempo começa a decorrer nos salões da vigília, um tempo cerrado, impreciso e gotejado de melancolia. É uma forma restrita de existência, um compromisso que assumo de repente com o meu passado. Seria bom apagar o pensamento, romper o fio, surpreender-me no espelho, apenas um homem, sair lá fora, inaugurar uma vida inédita iniciada de um momento. Ou simplesmente dormir, interromper-me um pouco para continuar amanhã, quando podem ser diferentes os acontecimentos. Mas tenho um passado: ele me governa. As coisas que fiz hoje administrarão amanhã os meus pés covardes, conformistas. Ou, como agora, os fatos e os símbolos de um tempo morto ditam o teor da minha vida, da minha consternação.

Entre as imagens incertas, brinquedo que desmancha e reata contornos, um pátio empoeirado resiste. Reconheço a paineira, talhada na base a canivete, os pórticos longos e escuros. Uma Nossa Senhora azul, insulada num monumento de pedra domina o centro do pátio. Há um refeitório de mármore rosado, onde se servia comida ruim e abundante. Uma vez, numa crise de acesso mais pecadora do que virtuosa, passei um mês e tanto a pão e água. Adiante do refeitório, uma escada de madeira sobe à enfermaria, ao cheiro de doença limpa, aos cuidados de um farmacêutico de voz adocicada, sedativa. Depois, a capela, os confessionários, de que eu costumava fazer longas e recriminadas abstinências.

As paredes eram brancas e irremediáveis. Guardo a tristeza desse branco de cal para sempre, lembra-me domingos nesse colégio triste, quando a brancura dos muros parecia avultar-se de modo mais inexorável. O envinagrado desejo de riscá-la a piche ficou insatisfeito. 

Quando muito, consegui acertar-lhe na intolerável cara brancarana dois ou três tinteiros, vingança imperfeita para quase dois mil dias de descontentamento branco. Brancos eram também os dormitórios. Nas quatro paredes, uma advertência presuntiva: “DEUS TE VÊ”. À noite, além do lumezinho vermelho do oratório, eram mantidas acesas duas ou três lâmpadas, foscas e vigilantes. Abusei muito de minha vista lendo com essa iluminação escassa os romances de “visto” impossível.

O colégio ficava no alto, em meia esfera montanhosa, cercada de magras capoeiras e morros depenados. A uma certa distância, a cidade velha, as casas pobres de Cachoeira do Campo, a gente malnutrida e mal vivida, as moças de uma feiura sem remédio. De tempos em tempos, íamos lá, em fila, chupar jabuticaba, o encanto único do arraial, além das igrejas e da praça onde Filipe dos Santos havia sido preso. Cachoeira era uma lástima, mesmo para nós, pássaros enjaulados numa gaiola em que se ensinava a história do mundo e outras tentações.

No Império, o colégio fora quartel. O “quando aqui ressoavam as patas dos cavalos dos dragões del-rei” era um efeito oratório que meu amigo Padre Alcides não dispensava de seus contumazes discursos. Do lado de fora, ficavam os eucaliptos, a brisa, o caminho da estação ferroviária. Uma alameda de ameixeiras ia até os campos de futebol, de onde voltávamos ao crepúsculo, oprimidos pela saudade de casa, a mais pura e a mais lacerante de todas as saudades. Era difícil vencer as duas horas de estudo que seguiam. Procurava enganá-las lendo a antologia da língua portuguesa, escrevendo num diário íntimo ou, primeiramente, espiando o voo leviano de um besouro trêfego. Muitas vezes, por cobro em geral de um sorriso debochado e rebelde, eu era expulso para fora, onde montaria guarda num dos pilares da arcada durante horas que ultrapassavam o momento de ir dormir. Sozinho no pátio, o menino se transformava no aprendiz da noite, a noite com os seus espantos, seus ruídos, suas sombras desfiguradas e espantadiças. Chorava, muitas vezes chorei diante do impenetrável negrume. Por vezes, uma porta se batia inesperada, uma tosse clerical assustava-me o devaneio, passos não sei de quem galgavam degraus, não sei onde, rápidos como se os descessem. Seu Vicente, o irmão roupeiro, num andar de seriema costumava cruzar o pórtico, apertar minhas bochechas numa solidariedade algo veemente, e ir-se embora, sem dizer palavra, embora conhecesse um desperdício de línguas. Na rouparia, talvez, conversasse com as aranhas e as canastras.

paulo-mendes-campos
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