Fonte: O jornal de Antônio Maria, Saga, 1968, pp. 33-35. 

Nós éramos uns 15 primos feios, 15 loucos e passávamos as duas férias do ano em Cachoeira Lisa, herança do nosso avô honrado, uma usina que, em 1924, não devia um tostão a ninguém mas que, em 1946, foi torrada nos cobres por dois vinténs, porque suas dívidas eram terríveis e insustentáveis. Dormíamos num apartamento enorme − sala imensa e um banheiro de bom tamanho − e em 15 camas de lona, com um lençol, uma baeta e um travesseiro para cada menino. Cada um tinha sua manta. R.A., por exemplo, adorava caçadas. Um dia lhe disseram que, na mata do sítio Curuzu, havia uma árvore, cujos frutos eram uma comida querida de todos os passarinhos da redondeza. Alguns caçadores, quando anoitecia, iam para lá, deitavam ao pé do tronco, cochilavam e, de manhã cedinho, acordavam com a cantoria dos bichos e cada tiro que davam era um juriti ou trocaz no embornal. R.A. resolveu ir também, mas como era, antes de mais nada, um comodista, levou cobertor, travesseiro, um colchão, candeeiro de querosene e um volume de Os maias (Eça de Queiroz) para ler, enquanto o sono demorava. Achamos graça em seu equipamento e, à sua saída, ainda perguntamos quando voltaria da África. No dia seguinte, entre oito e nove horas, R.A. deveria voltar com seus passarinhos mortos. Mas, deu dez horas, onze, meio-dia e nada. Ficamos sobressaltados e fomos para a mata de Curuzu, um pouco desconfiados que uma cobra ou um gato do mato o houvesse apanhado. Procuramos, gritamos seu nome, até que, uma hora depois, embaixo da tal árvore, R.A. dormia como um justo, coberto até o nariz, com o candeeiro aceso e o livro de Eça aberto na página que dizia: "Foi num sábado que Afonso da Maia partiu para Santa Olávia. Cedo, nesse mesmo dia, Maria Eduarda..." Com o seu comodismo, havia feito uma cama gostosa demais. Leu, adormeceu e, como a friagem da manhã estivesse muito gostosa, dormiu, perdidamente, até à uma da tarde, hora em que o encontramos, todo cuspido de passarinho.

R.G. era um demônio. Mais atleta, mais afeito à terra que qualquer um de nós, era uma espécie de Tarzan, filho do mato e do rio, diante da nossa meia tendência para o asfalto. Numa tarde, resolvemos caminhar pela estrada de ferro − e outra coisa não pretendíamos senão dar uma olhada na filha de um vigia novato, morena carregada, de olhos verdes e longas tranças que, de tardinha, lavava os pés, enfeitava a cabeça com uma flor e vinha para o patamar de casa tocar viola de 12 cordas e cantar "Sussuarana". No meio do caminho, demos com a ponte de ferro, feita de trilhos, dormentes e mais nada, onde só o trem podia passar. R.G. teimou que atravessar seria uma canja, andando por cima dos dormentes. E se o trem viesse? − aventamos essa perigosa possibilidade. Não ligou. Nós ficamos no barranco do Rio e ele começou, sozinho, a travessia. De repente, parecia coisa do diabo, o trem saiu da curva, a cem metros da ponte. R.G. ia exatamente na metade e não tinha tempo de correr para frente ou para trás. Fechamos os olhos, pensamos em Deus por sua alma de 16 anos. O trem passou, houve um minuto de pausa e, depois, R.G. apareceu no mesmo lugar, fazendo gestos vegetais e gritando que não seria a locomotiva da Great Western que o mataria tão jovem. Garoto de incrível presença de espírito, quando viu o trem à sua frente, agachou-se, segurou, com as mãos, um dos dormentes e deixou o corpo pendurado. Depois que passaram os 12 vagões, suspendeu-se como num exercício de barra e começou a rir do estado de pânico em que estávamos. O maquinista, ao chegar à estação de Gameleira, a dois quilômetros dali, entregou-se à polícia, confessando que tinha matado um menino da usina Cachoeira Lisa.

Primos e primas, seis moças e seis rapazes, resolveram passear a cavalo num engenho nosso, que se chamava Cuiambuca. Saíram de madrugada e prometeram voltar às três da tarde. Acontece que deu sete horas, estava quase escurecendo e nada deles voltarem. Como era negócio de moças e rapazes, embora primos, as mães ficaram meio assustadas. Eu e Tião, porém, sabíamos que o grupo voltaria são e salvo. Planejamos ir para Volta da Jaqueira, lugar frequentado por fantasmas e almas penadas. Quando os cavaleiros surgissem, Tião, embrulhado num lençol, iria para o meio da estrada e ficaria parado, rezando, aos berros, uma jaculatória pelo repouso dos espíritos desassossegados. Fiquei atrás da jaqueira e quando ouvi o tropel dos cavalos, mandei Tião, com o seu lençol, para o meio do caminho. Nossos primos, tomados pelo susto, em vez de correr, baixaram os rebenques no pobre do Tião que, durante 15 minutos, apanhava e gritava: "Não tem graça, não. Vocês sabem que sou eu". Do meu esconderijo, queria intervir, mas a crise de riso era tanta, que não conseguia sair do lugar.

São estas as pobres e perdidas recordações embora sem ternura para os outros de que me sirvo nos dias de saudade. Meus 15 primos, espalhados, desarrumados no mundo (um deles é frade dominicano, em Paris) são, hoje, nestas coisas que conto, minha única maneira de voltar ao moleque da campina, que não sabia nada e era rei de tudo, para quem o remorso foi uma simples palavra do catecismo, no tempo em que a reza da noite redimia as viagens impossíveis do sexo. Não desprezeis minhas humildes saudades, mas buscai, em vossa meninice, lembranças parecidas com estas e elas vos restituirão um certo apego, um pouco de bem-querer aos dias de hoje, tão sem graça em sua maioria.

antonio-maria