Lá de baixo da rua vêm os primeiros ruídos da manhã; eles fazem bem, estou cansado desta noite solitária tão povoada de memórias ruins. Lavo a cara, depois abro uma vidraça, meto o focinho para fora, para o ar gelado da manhã, com delícia. Está nublado, mas clareia; roncam os motores de carros; passam dois homens apressados, as mãos nos bolsos dos capotes pobres. Não quero mais pensar no Brasil, esses jornais que li durante a noite me encheram de Brasil. Viajar é bom. Como estava difícil um avião direto, vim por Buenos Aires; mas o campo estava fechado e pela madrugada tivemos de descer em Montevidéu. Pela manhã fazia sol, dei um passeio pelo centro, guloso de conhecer alguma coisa da cidade. É um prazer que tem toda a frescura das alegrias da infância, conhecer um lugar novo. O comércio mal se abria; comprei apenas umas caixas de fósforos para a coleção do meu amigo Miguel que torce pelo Fluminense, mas é bom rapaz.
Não via Buenos Aires há nove anos; ali estive três meses e não tenho saudades desse tempo. Ou pensei que não tivesse; quando dei por mim estava na esquina de Esmeralda e Corrientes, procurando em vão o 777, que não existe mais; agora há uma joalheria ali. Mas fui até Esmeralda e Tucumán; no caminho vi a mesma rotisseria, com os frangos e patinhos a rodar louros no fogo vermelho. O Caledonia não tem mais flat-service, e o bar Atelier, que era daquela alemã morena que cantou na Urca, com as Singing Babies, não é mais da alemã, é de um sujeito qualquer que com certeza, por não ter comprado o título, mudou-o para Tellier; mas a decoração é a mesma. O Shorthorn Grill e o Richmond estão no mesmo lugar; isso me dá um certo consolo e tenho até a ideia absurda de virar uma esquina para procurar aquela moça de olhos claros que me vendia cigarros em 1946...
Começo a me lembrar de coisas e de súbito me dou conta de quanto vivi em Buenos Aires, sinto um carinho pela cidade imensa, sinto um prazer em andar pelas suas ruas, um amargor de lembrar coisas, uma vontade de fazer confissões a qualquer transeunte, dizer-lhe: “eu também vivi aqui, trabalhei e sofri aqui, esta cidade também é minha, ou melhor, eu também sou daqui, embora me desconheçam; tenho uma parte de minha vida aqui, isso ninguém me pode tirar, tenho direitos...”.
A cidade arfa, cansada de conflitos que logo recomeçarão. Sinto-me mal de saúde e passo um dia trancado no quarto do hotel; de minha janela vejo uma igreja que foi incendiada. Vi os sinais da revolta e dos incêndios; ouço comentários; no dia de minha partida os conflitos recomeçarão. Sou apenas um transeunte; e atravesso, como um túnel, meio assustado, meio melancólico, minha Buenos Aires de 1946. Mas outra nasce, a de hoje, e sinto timidamente o seu carinho.