Em pauta, a música

Umeji, avó de Haruo, com shamisen, Chácara Arara, Londrina-PR, 1941 circa. Foto de Haruo Ohara. Coleção Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Com exceção de Vinicius de Moraes, para ele “outro departamento”, Otto Lara Resende achava que Manuel Bandeira era “o mais musical” dos poetas brasileiros. Para prová-lo, sacava a lista dos compositores de quem o mestre se tornou parceiro, fosse com poesia catada em sua obra, fosse escrevendo versos para partituras deles. Artistas graúdos como Villa-Lobos, Jayme Ovalle, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Ari Barroso. Otto poderia ter acrescentado Tom Jobim, Gilberto Gil, Dorival Caymmi e Milton Nascimento, que musicaram Bandeira após a sua morte, e nem assim a lista estaria completa. Seu lado musical lhe parecia tão consistente que o cronista, em “Uma letra e suas voltas”, até se penitencia por haver acreditado ser dele a versão brasileira do “Parabéns pra você” – escrita, na verdade, por uma paulista de Pindamonhangaba, Berta Celeste Homem de Mello, da mesma família que nos deu também o grande musicólogo Zuza Homem de Mello, recentemente falecido. O equívoco talvez se deva ao fato de que Bandeira fez letra para uma canção composta por Villa-Lobos com a mesma finalidade, “Feliz aniversário” (“Saudamos o grande dia/ que tu hoje comemoras...”), e que simplesmente não pegou.

Em duas ocasiões, Otto rememora uma noite de Copacabana, em 1960, e que viu Bandeira maravilhar-se, madrugada adentro, com a voz, o violão e a figura de João Gilberto. “Rindo à toa, Manuel pôs para fora o piano de sua dentuça”, descreve Otto em “O galo, o João e o Manuel”. Voltará ao episódio em “Poeta do encontro”, onde sobram elogios também para Caetano Veloso, “legítimo poeta do Brasil”.

Ao time de Bandeira certamente pertencia o não menos pernambucano Antônio Maria, a quem devemos clássicos da música popular como “Ninguém me ama”, em parceria com Fernando Lobo, e “Manhã de Carnaval”, com Luís Bonfá. Na crônica “Discurso a Caymmi”, eis que ele abre a boca não para cantar, mas para homenagear o autor de “Saudades de Itapuã”, na noite de 1953 em que a antiga Praça da Matriz, em Salvador, passou a se chamar Praça Caymmi.

Ivan Lessa, que se saiba, não tocava instrumento e muito menos compunha, mas, apaixonado por música, possivelmente invejava quem brilhasse com o gogó, a julgar pelo que afirmou em “Cantor e cantar”: “Cantor tem mais a dizer do que a gente”. Já Fernando Sabino, adolescente apaixonado pelo jazz, literalmente fez barulho em Belo Horizonte a partir do momento em que iniciou vitalícia carreira paralela de baterista amador. Por que baterista? Bem, reconhece ele com sabiniano bom humor em “A alma da música”, trata-se de um “instrumento de vazão do impulso de outros tempos – o do homem primitivo que mora em nós”.

Também ele mineiro, Jurandir Ferreira não chegava a tanto, bastando-lhe ser ouvinte embevecido de bandas de música na sua Poços de Caldas. Em “O coreto”, de 1971, inconformado com a desaparecimento delas na cidade, manifestou o receio de que o antigo reduto dos músicos na praça pública acabasse rebaixado a mictório.

Surpreendente é a história que Rachel de Queiroz nos conta, sobre um moço de entregas de uma tinturaria que, introduzido por engano na sala da mansão de uma grã-fina, se encanta com um “O piano de cauda”. Não chega a constituir spoiler a informação de que bem mais tarde também ele será um homem rico, e que, na sua luxuosa residência... bem, fiquemos por aqui, para não desgastar a surpresa.

De Paulo Mendes Campos, no capítulo musical, há uma crônica cujo título já promete: “Os mais belos versos da MPB”, seleta na qual a joia de Orestes Barbosa em “Chão de estrelas” – “Tu pisavas os astros distraída” – é a mais cintilante. Em compensação, o poeta Paulo torce o nariz para o que, na mesma letra, lhe parece ser um anticlímax: “É a cabrocha, o luar e o violão”. Já em “Coisas deleitáveis”, encaixa “João Sebastião”, quer dizer, Johann Sebastian Bach, entre seus mais ansiados prazeres nesta vida. Em “Estribilho de uma canção”, revela algo que para a maioria do leitores de Rubem Braga será novidade: não é que ele, homem de poucas palavras, utilizou um punhado delas (“Me leva, canoa/ no seu rumo à toa...”) para compor a letra de “Canoeiro”, canção de Bororó?

Por aquela altura, meados dos anos 1950, o Velho Braga, depois de assistir a um show na noite carioca, com Ari Barroso, Haroldo Barbosa, Lúcio Rangel, Silvio Caldas, amigos seus do mundo da música, vê o pensamento derivar para algo mais abrangente. “O grande milagre que ainda acontece é o amor”, vai o cronista destilando em “Amor, etc.”: “No meio da vida cheia de tanta encrenca, tanta coisa triste, e sofrimento e doença e lutas”, tal sentimento de repente sobrevém, “como um pássaro que pousa em nossa janela e começa a cantar”.

Em “Goteiras”, do tempo em que viveu no Chile, na mesma década, Rubem Braga alega preguiça de escrever, e, sem maior cerimônia, pede a Pablo Neruda que fale por ele. “As goteiras são o piano da minha infância”, se põe a recitar o poeta chileno, autor do livro que o brasileiro tem nas mãos. Não era a primeira vez que o cronista dava a palavra a outro escriba: anos antes, em “Lúcio Rangel, Sérgio Porto, Vinicius de Moraes...”, depois de ler um número especial de uma revista dedicado ao jazz, do qual participam estes e outros amigos seus, o Braga conclui que o pessoal está mal informado, pois davam mostras de não conhecer algo que tanto entusiasmara o romancista italiano Curzio Malaparte: o jazz... russo. Em outra ocasião, estando ele em Ipanema na “paz vesperal de um sábado”, numa paisagem ainda mais enriquecida pelo encanto suplementar de um casal de sanhaços azulados, Rubem, rendido à beleza, se põe a escrever “Beethoven”, em agradecimento “a esse homem rei de um mundo estranho”.

O panorama não está menos belo num dia em que, egresso de uma feijoada, o Braga segue para o Clube dos Marimbás em companhia do pianista Mário Cabral. É um requintado fecho de domingo carioca ao qual não faltarão um arco-íris e, mais tarde, uma lua cheia sobre as ondas, luxos da natureza que o amigo artista, ao teclado, harmoniza à perfeição com Frédéric Chopin. Na varanda, Rubem se dá conta de que as notas do piano vêm “acompanhadas pelos movimentos das ondas e pelo movimento da lua” sobre elas, “e pela brisa nas folhas dos coqueiros”. Até para a beleza há limites, descobre o cronista nas linhas de “Domingo” – e, repleto, decide levantar acampamento.

Trinta anos sem o nosso Sabiá

Quando se foi Jacques Prévert, em 1977, Fernando Sabino quis saber de que morrera o poeta francês. Sei lá, respondeu Rubem Braga – e fechou o papo com um resmungo muito seu: “Aos 77, sempre se morre de alguma coisa”. Curiosamente, a exata idade que teria ele, Braga, quando um câncer o levou, faz três décadas neste 19 de dezembro. Discretamente, estivera pouco antes em São Paulo, a fim de encomendar a cremação de seu corpo, procedimento funerário então inexistente no Rio de Janeiro. Quem é o falecido?, quis saber o funcionário do crematório de Vila Alpina, e por pouco não caiu das nuvens quando o Braga apontou o próprio peito.

De tudo o que se escreveu sobre o nosso maior cronista depois que ele se foi, o mais belo texto talvez seja “Um ano de ausência”, delicada e divertida homenagem de um de seus amigos mais chegados, Otto Lara Resende, publicada na Folha de S.Paulo em 19 de dezembro de 1991.