Eu hoje estou com preguiça de escrever; vou pedir a chileno para escrever para mim; e roubo logo a prosa de um grande poeta que se chama Pablo Neruda e que em 1947 falou de sua infância.

É na pequena e excelente antologia com que acaba o livro de Alone, História personal de la literatura chilena (livro tão bom que tive o impulso de comprá-lo para mandar de presente a Manuel Bandeira no seu dia aniversário, em 19 de abril), que encontro este trecho capaz de comover a qualquer um que já morou em casa antiga, no Chile, no Brasil, em qualquer canto do mundo:

“As goteiras são o piano de minha infância. Meu pai sempre falava em comprar um piano que, além de permitir que minhas tias tocassem minha adorada valsa Sobre as ondas, daria à nossa família esse título inexprimivelmente distinto que vem da frase: “Eles têm piano”. Meu pai, nos momentos em que o deixava livre sua vida de mobilidade perpétua, porque era chefe de trem, chegava até a medir as portas por onde deveria passar aquele piano que não chegou nunca.

Mas o grande piano das goteiras durava todo o inverno. Logo às primeiras chuvas revelavam-se novas goteiras, de voz doce, que acompanhavam as antigas. Minha mãe espalhava bacias, vasos, jarras, latas. Cada um dava um som diferente: a cada um desses vasilhames chegava do céu tempestuoso uma diferente mensagem, e eu distinguia o som claro de uma bacia de ferro esmaltado de lavatório do som opaco e amargo de um balde amolgado. Esta é quase toda a música, o piano de minha infância, e suas notas, digamos, suas goteiras, me acompanharam aonde me tocou viver; caindo sobre o meu coração e a minha poesia”. 

Pela tradução.

rubem-braga
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