De vez em quando alguém me pergunta que mania é essa minha de bateria de jazz, se não sou músico e nem sequer aprendi direito a tocar. Limitei-me a assumir uma vez ou outra, depois do terceiro uísque, o lugar do baterista da banda de alguma casa noturna, os músicos nem sempre entendendo a que vinha aquela intromissão.
Minha carreira, aliás, se viu seriamente ameaçada numa noite em que levei Lygia para ouvir o Sacha ao piano. Não o dos tempos da boate Vogue, ou da outra, com seu nome, que ela não chegou a conhecer, mas da última, Balaio, onde ele continuava a encantar os velhos amigos com a suavidade de seus acordes. Fomos brindados com o melhor repertório, e, pensando em fazer bonito para minha mulher, ousei acompanhá-lo na bateria, como antigamente. Ao fim, modesto, lhe pedi desculpas – não reparasse, havia muito tempo que eu não tocava.
E ele, cordato:
– Não se preocupe, você nunca tocou melhor do que isso não.
Tudo começou quando eu tinha dezoito anos e ainda morava em Belo Horizonte. Um dia Chico Lobo me propôs:
– Vamos aprender a tocar um troço?
O troço era um instrumento musical qualquer. Passávamos o dia inteiro ouvindo discos de jazz: Tommy Dorsey, Fats Waller, Benny Goodman. E Gene Krupa, naturalmente. Era chegada a hora de tocar alguma coisa. De acordo, mas o quê? Sax? Trombone? Clarineta? Tinha de ser instrumento de sopro, que já sabíamos imitar com a boca:
– Você tem cara de saxofone – decretei.
– Eu no sax e você no trompete – disse ele.
A conversa ficou nisso. Até que um dia, entre um disco e outro, ele me informou em tom displicente:
– Está para chegar.
– O quê?
– A bateria. Mandei vir de São Paulo.
Estava doido, e tão jovem ainda.
– É mais fácil de tocar. Basta um pouco de ritmo. E isto a gente tem.
Uma semana depois ele aparecia em minha casa no seu carrinho conversível, trazendo no banco de trás um bumbo, dois tambores, pratos, várias peças de metal:
– Vou ter de guardar com você. Mamãe não me deixou entrar.
Lá da varanda, jornal na mão, intrigado, meu pai nos via passar carregando aquela tralha para o porão de casa. Depois me chamou para uma conversa:
– Que diabo vocês estão arranjando? Banda de música?
Expliquei que o Chico Lobo havia comprado uma bateria e a mãe dele não o deixou passar do portão. Então me pediu que a guardasse por algum tempo.
– Quanto tempo? – meu pai quis saber, apreensivo.
Naquela mesma noite cheguei em casa no embalo de alguns chopes e deslizei para o porão, resolvido a experimentar logo a bateria. Pá-parará-pá-pum-bum! Uma beleza: minha alma vibrava de emoção e as paredes também vibravam, a casa só faltava vir abaixo. Fui dormir, convencido de ter descoberto a minha vocação.
No dia seguinte meu pai ponderou, durante o almoço:
– Você não podia escolher um instrumento mais interessante? Flauta, por exemplo, ou violão...
Expliquei que o jazz era a música do nosso tempo.
– Não sei que música é essa, com tanta barulhada.
– É o ritmo. A marcação. O balanço, a alma da música.
E a alma da música lá ficou, instalada no porão. Meu amigo logo se desinteressava, voltado para outras preocupações. Eu passei a ver na bateria não a música de nosso tempo, mas o instrumento de vazão do impulso de outros tempos – o do homem primitivo que mora em todos nós. Chegava tarde da noite, aborrecido, trazendo da rua uma daquelas contrariedades da juventude, e, em vez de ir chorar na cama que é lugar quente, descia o braço na bateria. Era a minha desforra. Sem aprender a tocar, e apenas tendo certo jeito, me esbaldava em toda forma de barulho a que chamava ritmo. Meu pai surgia de pijama à porta:
– A essa hora não, meu filho. Tenha paciência.
Paciência tinha ele, que não me botava na rua com bateria e tudo. Quando algum tempo depois cometi a imprudência de me casar, levei a bateria de mudança para o Rio. Que grandes e dignos vizinhos foram os moradores do edifício Elizabeth, em Copacabana! Que extraordinário senso ético, que espantosa sensibilidade comunitária, que fabuloso espírito de solidariedade cristã! Nunca chamaram a polícia. Nunca sequer reclamaram contra a devastadora música do nosso tempo, feita sem música e sem tempo, a qualquer hora do dia ou da noite, no meu apartamento do sexto andar. Nem mesmo quando Pablo Neruda arrebanhou no Vermelhinho uma dúzia de improvisados convivas para um jantar lá em casa em sua homenagem. Jayme Ovalle, de terno branco e monóculo, dançou madrugada adentro ao som de uma macumba executada por mim na bateria. O Barão de Itararé gargalhava por trás das barbas. Só não se ouvia a léguas de distância a discreta risadinha de Manuel Bandeira.
Anos mais tarde, encontrei em Los Angeles um brasileiro que me contou por que havia se mudado do Rio:
– No meu prédio morava um sujeito que tinha uma bateria...
Pelo endereço, o sujeito era eu.
Foi a única evidência que jamais tive de que alguém na calada da noite me escutasse. Não sei como não fui abatido a tiros. Hoje, as festas começam à meia-noite, ao som bem mais barulhento do rock, e no entanto... Bons tempos, aqueles.
Bons tempos que foram passando, e o bumbo se enferrujava, o couro da caixa furou, o tripé se desmontava, o prato entortou, o pedal emperrou, a mão se cansou de tocar. Levada comigo para onde eu fosse, a bateria era agora um traste inútil, no qual eu jamais realizaria a minha vocação. Por muito tempo ficou atirada a um canto, sem que eu soubesse que destino lhe dar. De vez em quando um curioso perguntava que diabo vinham a ser aqueles tambores. Eu dizia que eram parte de uma bateria deixada por um sujeito que sumiu no mundo.
Até que um dia tive a ideia de levá-la de presente a Dom Hélder Câmara. O arcebispo a recebeu satisfeito, já que a bateria ainda aguentava uma reforma. Não para que viesse a tocar, evidentemente, mas para que, através do seu Banco da Providência, ela chegasse às mãos de alguém a quem a Providência Divina houvesse dotado de vocação maior do que a minha.