Se nunca foi fácil traçar a linha divisória entre arte erudita e arte popular, agora é mais difícil levar a cabo essa tarefa ociosa. Indiferente à palha seca da controvérsia, a arte segue o seu caminho. A vertente é uma só e é nela que se dá o encontro das águas. Pouco importam as fontes de onde procedem. Purificadoras e purificadas, seu caráter lustral as universaliza. Caetano Veloso, por exemplo. Quem ousaria classificá-lo?
Ficou para trás o tempo em que se podia espetar os artistas como insetos. O poder público detinha também a autoridade entomológica. Em princípio, a arte devia permanecer ao relento. Maldito, o poeta não era aceito. Na escala de valores, popular, mais que um adjetivo, era um estigma. Daí o escândalo do sarau de dona Nair de Tefé. Primeira-dama, ela própria artista, afrontou as barbas de seu marido Hermes da Fonseca. E toda a conspícua Velha República.
Em pleno palácio do Catete, ouviu-se por sua iniciativa o Corta jaca, de Chiquinha Gonzaga. Se duvidar, também se dançou. Delirante sucesso na rua, a música era aplaudida em cena aberta e assobiada nos botequins. Viajou a Portugal e lá arrebatou o público. Tudo muito bem. Mas no Catete só podia ser obra diabólica. Insânia. Por muito menos, quase 60 anos depois, ao Vinicius apontaram o caminho da rua. Por sinal que o AI-5 o surpreendeu num show em Lisboa.
A maturidade de Caetano coincide com o amadurecimento cultural que lhe proporciona o reconhecimento nacional. Caducas as classificações, sua arte aniquila toda e qualquer discriminação. Exaltada aqui dentro, repercute lá fora. A música lhe dá dimensão internacional. O que ele é, porém, é universal. A poesia de fato nunca esteve divorciada da expressão popular. Manuel Bandeira tirava o chapéu, respeitoso, para Sinhô, Pixinguinha, Noel.
Dos poetas, foi dos mais musicais, Manuel. E musicado. Arranhava o seu violão. Amigo do Ovalle, do Villa-Lobos, do Mignone, do Guarnieri. Letrista do Ari Barroso. Saiu extasiado da casa em que ouviu João Gilberto e sua recente batida bossanovista. Fui testemunha ocular e auditiva. Tudo isto e muito mais vem a propósito da fusão que Caetano Veloso hoje encarna. Seu irresistível abre-alas. Metabolizada, a grande arte canta nesse legítimo poeta do Brasil.