Teu reino não é o da Música. Sempre olhaste com certo assombro os que vão a um concerto como quem vai a um ato de religião e, afundados em suas poltronas, gozam e sofrem em silêncio e se entregam a um mundo misterioso de sensações e sentimentos de onde emergem, com olhos brilhantes, dizendo coisas estranhas. Uma vez ou outra tiveste inveja desses apaixonados que, entretanto, no íntimo, assemelhas um pouco aos místicos e aos fumadores de ópio: mas nem sequer fizeste o menor esforço para entender o jargão dos iniciados e ouviste suas discussões distraído, como quem ouve falar uma língua estranha, ou doentes a contar sua febre e seu delírio. “Eles têm um outro mundo, maravilhoso e infinito, onde jamais entrarei” ― pensaste com despeito. Mas a graça, e o gozo, e as aflições deste mundo em que vives sempre bastaram para te prender e te perder.
Foi assim, ao acaso de uma tarde vadia, que te deixaste ficar sozinho, na rede, a ouvir um desses discos long playing de tamanho grande em que uma pianista de nome alemão gravou ao piano uma sonata de Beethoven, uma sonata de um número qualquer. Olhavas o mar cinzento que o sudoeste frio agitava de espumas; e às vezes parecia que não era apenas o vento, era também a música, na sua catadupa de notas graves, que assanhava o mar e fazia balançar no alto os grandes pinheiros.
“Beethoven” ― pensaste um instante ― um alemão nascido em Bonn, que andou muito em castelos de príncipes e arquiduques, que dizem que era gênio e que ― reminiscência absurda de uma leitura de acaso ― começou a ficar gordo em 1822. E como 1822 te lembra o grito do Ipiranga, associaste ao acaso esse grito e aquela surdez, como se o príncipe gritasse “Independência ou Morte!” e o músico perguntasse: “Hein, como assim?”.
Sorriste a essa ideia ridícula: depois esticaste o corpo na rede e ficaste a olhar o céu, fechado de nuvens cinzentas e escuras. Tua rede ainda balançava devagar, e de olhos quase cerrados viste que as notas se precipitavam como água entre pedras, descendo um morro, como o córrego do Amarelo, em Cachoeiro, ou aquele outro, quase uma torrente, de água claríssima e gelada, à cuja margem deitaste, envolvido num capote, para descansar um instante durante a guerra, nos Apeninos. Agora, uma revoada de coleiras-do-brejo, e tua amada vem dançando, a saltar de nuvem em nuvem, pois há pequenas nuvens brancas no céu azul. E ela marcha para ti de braços estendidos, suas pernas são longas, há um reflexo de sol na sua coxa que avança. Agora estás grave e só numa imensa casa deserta, lá fora há sombra imensa de mangueiras e, no silêncio, uma chuva caprichosa tamborilando numa coberta de zinco. Mas pequenos seres se precipitam numa corrida frenética e caprichosa, fazendo curvas, se detendo, avançando, subitamente; serão corças pequenas? Tua amada está perto de ti, ouves bater seu coração, mas tu mesmo respiras opresso, sabes que talvez não dê pé, os dois vão morrer afogados, é preciso vencer essa onda de sons, é preciso encher o pulmão e, entretanto, a música se precipita sobre a tua cabeça e te afoga, mas agora te elevas, estás mais alto, numa crista, a água teimosa que avança com uma fúria reiterada ficou lá sob as pedras, triste e mesquinha... muito longe há moças com longos vestidos brancos, descalças como nos ballets, que avançam lenta, solenemente, levando a bela moça morta, tu és um grande bailarino, tens na mão uma flor, tu lhe ofereces essa rubra flor, ela revive, sorri e dança, tu adormeces feliz.
E apenas despertas ao ruído seco da vitrola rodando depois do disco acabado ― runc, runc, runc ― e na paz vesperal do sábado de Ipanema (na árvore, perto, há um casal de sanhaços azulados) tens vontade de agradecer e de pedir desculpas a esse homem rei de um mundo estranho, Ludwig van Beethoven, natural de Bonn.