Linha do trem, Rio de Janeiro-RJ, 1950 década. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Quando se sentou para escrever Terra nova, Rachel de Queiroz gostaria de contar “uma história gentil”, sobre “uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo”. Logo, porém, precisou admitir que dali não sairiam “flores”, só “miséria”. Ainda assim, legou-nos uma história bonita, muito digna de ser lida.
Dos nossos cronistas, Rachel talvez seja, ao lado de Rubem Braga, quem mais escreveu sobre gente que trocou por outra a sua terra – não fosse ela mesma uma filha do Ceará que foi parar no Rio de Janeiro. Como acima ficou claro, era sensível ao drama dos desenraizados. A começar pelos africanos reduzidos no Brasil à condição de escravos. Não espanta que Rachel, em Devolvam a Rosa de Ouro, se tome de farpada ira para propor que se devolva ao Vaticano a Rosa de Ouro, condecoração que o papa Leão XIII concedeu à princesa Isabel por haver assinado a Lei Áurea. O motivo de sua indignação: em Minas Gerais e em Brasília, nos anos 1950 em que ela escreve, “campeia às soltas o tráfico de escravos – sertanejos nordestinos apanhados à força ou mediante engodos, durante a crise da seca, transportados em infames paus-de-arara que nada deixam a desejar aos navios negreiros, e vendidos a tanto por cabeça” em outros pontos do país. Tais mercados de carne humana, compara Rachel, pouco diferem daquele que, nos tempos do Brasil Colônia, "havia aqui no Valongo", o porto de chegada de escravos no Rio de Janeiro.
Em Filhos adotivos, de 1948, a escritora relembra o que lhe parece ter sido, no século 19, uma quase abolição de fronteiras nacionais, e lamenta o surgimento, em tempos mais recentes, de restrições emigratórias “decorrentes da primeira grande guerra, dos fascismos, do antissemitismo”. Com isso, deplora Rachel, “fechou-se a porta ao emigrante”, “burocratizou-se a emigração até ao delírio.” O que jamais deveria ter acontecido, uma vez que “receber emigrantes, receber cidadãos novos numa pátria, é como adotar filhos alheios e misturá-los com os nossos, cá dentro do nosso lar”, vem a ser uma “aventura generosa, arriscada, quase heroica”. Já em Árabes, de 1958, a cronista vê motivos de alento, por acreditar que a segunda metade do século 20 seria marcada pela descolonização. “É grato aos nossos corações”, ela aposta, “ver que árabes, negros, hindus, amarelos vão expulsando os intrusos das terras imemorialmente suas”.
Em duas ocasiões Rachel escreve sobre imigrantes húngaros. Os finos tecelões de Um corte de linho, que ao chegarem ao Brasil, “exaustos da guerra e do nazismo, em busca de trabalho e de paz”, não eram ainda operários, mas intelectuais. Quanto àqueles de que trata em Os húngaros da Ilha das Flores, esses “estão arrenegando o Brasil e preferem tudo, até um porão de navio como clandestinos, a terem que permanecer aqui”. O que leva a cronista a concluir que é “até criminoso falar em emigração [de estrangeiros] financiada pelo governo” quando nosso trabalhador do campo “vive em miséria e esquecimento".
Também Rubem Braga era sensível à questão dos imigrantes nordestinos, extrato da população urbana cuja vida dura lhe era impossível não ver. “Não preciso nem levantar da minha mesa de trabalho para sentir quanta gente da roça está vindo para a cidade”, escreveu ele em Êxodo, ao acompanhar através da janela a faina dos operários a erguer um prédio em frente. “É desses homens que nós todos vivemos”, faz justiça Rubem Braga. “Cuidar deles é cuidar de nós mesmos.”
Em Colonos, depois de falar de imigrantes alemães estabelecidos em Garapuava, no Paraná, graças a empréstimos de uma empresa suíça e a facilidades proporcionadas pelo governo brasileiro, o cronista indaga: por que não dar tratamento semelhante a famílias de brasileiros que vêm da roça e acabam nalguma “sórdida e negra favela” carioca? Em Migrações, o Braga reage a quem faz alarme ante “trabalhadores que emigram tangidos pela fome”. E dá um troco: “Por que não proibir também aos usineiros e industriais do Nordeste gastar o capital que deviam empregar lá em especulações imobiliárias no Sul ou em farras e tolices no Rio ou na Europa?" Usa igual veemência em Imigração, rebatendo quem critica uma imigração que não traga exclusivamente agricultores e técnicos. “A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores”, adverte o cronista, certo de que em cada um que chega pode haver riquezas não previstas: “Dentro de alguns deles, como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção e a nossa glória".
Quase sempre pessimista, Rubem Braga mostra-se esperançoso em Corinto, de 1954, por se ver diante de “uma história comovente”. Na cidade mineira que assim se chama, entroncamento de caminhos fluviais e rodoviários pelos quais passam centenas de milhares de nordestinos rumo ao sul do país, o governo federal tivera a excelente ideia de construir uma grande e moderna hospedaria na qual os viajantes em trânsito pudessem ter banho, comida e cama. Ele só estranha que, pronta havia um ano, a benfeitoria ainda não tivesse sido inaugurada, pela absurda razão de não terem os políticos encontrado uma denominação de consenso. Por que não Hospedaria de Corinto?, propõe o cronista. Ele não poderia saber que a finalmente batizada Hospedaria do Imigrante seria, poucos anos mais tarde, não só desativada como abandonada, à mercê de predadores que dela carregaram até os tijolos.
Paulo Mendes Campos é outro que escreveu, algumas vezes de raspão, mas sempre em textos interessantes, sobre emigração e imigrantes. Numa das notas de Os trocadores de ônibus..., por exemplo, ele dá notícia de um italiano, “homem rude, ingênuo, silencioso” que veio tentar a vida no Brasil, e cujo objetivo único é mandar dinheiro para a família, que lá permaneceu. Parece decidido a ficar por aqui, pois quer aprender logo o português – ao contrário do que se deu numa primeira tentativa de fixação em terra estrangeira: na Bélgica, ele conta, recusou-se a aprender o flamengo, “língua muito feia, que não dá gosto falar”.
Na crônica Encontramos nossa amiga..., o personagem de Paulo Mendes Campos é um imigrante alemão que, após dez anos trabalhando em Santa Catarina, decidiu “correr mundo” – para finalmente concluir que deveria “ficar quieto no Brasil”, onde, justifica, “ninguém tem pressa, a gente pode ter galinha, porco, leite, uma horta...” O departamento zoológico garante a Paulo, em Petrópolis, mais um alemão – cuja preferência, para variar, passa ao largo de galinhas e de porcos: as espécies que lhe interessam, e exclusivamente para venda, são leões, tigres, macacos, onças, serpentes, zebras e até hipopótamos.
O próprio Paulo Mendes Campos, sem chegar a tanto, teria o que contar de sua experiência de mineiro autotransplantado para o Rio. Por exemplo, em Morei primeiro, desde que..., crônica sem título de que recentemente se falou aqui e que sempre valerá a pena revisitar, na qual ele registrou sua errância de jovem empobrecido por diversos endereços cariocas em seus tempos de recém-chegado. Tanto quanto ele, aliás, são imigrantes todos os demais integrantes do nosso time de cronistas. Até mesmo o mais apegado a sua terra, Jurandir Ferreira, mineiro visceral cuja vida, transcorrida quase toda ela em Poços de Caldas, incluiu um parêntese de dois anos em São Paulo.
Também o pernambucano Antônio Maria serviu ao leitor suas memórias de imigrante. Que ninguém desista da leitura ao topar com o sombrio adjetivo contido no título de Três mudanças trágicas. Pois o que há ali é, ao contrário, pura delícia: peripécias, não raro alucinadas, que pontuaram sua primeira tentativa de trocar o Recife pelo Rio, aos 20 anos de idade. Ainda bem que o grande Maria não desistiu de se encaixar na cidade onde haveria de produzir o melhor de sua obra de cronista e compositor popular.