Periódico
O Cruzeiro

coluna: Última Página

Publicada, posteriormente, no livro O brasileiro perplexo, de 1963, pp. 47-51.

Diz que certa vez o duque de Windsor, em Paris, foi visitar a exposição que lá fazia Portinari e se interessou por comprar um quadro:

― O senhor não terá alguma pintura de flores? 

E Candinho, botando o seu olho azul e irônico no ex-rei:

― Não senhor. Só tenho miséria.

*

Assim me sinto hoje em dia. Queria escrever uma história gentil, contando a adaptação de uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo. Mas não saem flores, só sai miséria.

Começa o caso com o embarque de trem no Quixadá, em procura do Crato, ponto final da linha de ônibus para São Paulo.

Mas passemos por alto essa viagem de quatrocentos e tantos quilômetros no trem superlotado, atrasado, descarrilado; a chegada ao Crato já tarde da noite, a procura de pensão, as crianças chorando, as trouxas perdidas, nem uma porta aberta onde se comprasse uma bolacha.

Passemos, ah passemos ainda mais por alto a viagem de ônibus, três mil e quatrocentos quilômetros através da Transnordestina e depois a Rio-Bahia e depois a Via Dutra. Tudo são dores e enjoo, calor e poeira, sacolejos e esperas de dias quando há um prego, sempre no maior desconforto, sem falar na saudade e no medo da mudança, que isso já nem são desconfortos, são metafísicas. E a gente queria contar uma história gentil.

Depois vem a chegada em São Paulo.

Foi Ribamar, o irmão, que numa loucura de generosidade mandou chamar a tribo toda, incluindo a mãe viúva, os irmãos casados, a mana solteira e os dois sobrinhos órfãos. Pagou as passagens, mas não os pôde esperar na estação. O ônibus não tem hora de chegada, quando muito tem um dia, e isso não contando os pregos. Felizmente o Ribamar teve a ideia de mandar em carta o número do telefone de um botequim de onde o poderiam chamar por favor na obra em que trabalhava.

Mas aí veio o problema de falar no telefone, coisa que ninguém da família sabia. E de onde telefonar? O Eliseu, o mais velho e mais expedito, teve a ideia de perguntar a um passante se ele sabia onde é que ficava aquele telefone. O paulista aí gozou a besteira do baiano, e o Eliseu foi se danando, porque para começo de conversa ele não é baiano, nunca teve parente baiano e até não gosta muito de baiano. Mas o paulista depois de gozar um pouco, mostrou a sua boa vontade e deu o telefonema, chamando o Ribamar. Que mandou a família esperar com paciência na rodoviária, enquanto ele tomava condução e os alcançava. Se acomodaram mal e mal pelos bancos da estação e ficaram esperando. Horas, horas. Cansados, com fome. E o frio? Frio aliás já vinha ocupando lugar importante na vida deles, penetrando os liformes de brim dos homens, os vestidos delgados das mulheres, desde que haviam começado a escalar as altitudes de Minas Gerais. E agora ali na cidade, enquanto uma garoa fina começava a penetrar o ar escuro, o frio passava pelos panos de algodão como luz pelo vidro, furava a pele e ia morder os ossos.

Afinal apareceu o Ribamar ― de óculos escuros, blusão de couro, quem visse dizia que era um aviador. Falando animado, mas sentia-se que estava um pouco tonto com aquele povaréu todo que lhe caía assim às costas, nove pessoas!

Como é que ia botar tudo no quartinho de aluguel que arranjara numa favela improvisada pros lados da Cantareira, por nome a Nova Bahia?

Aliás, segundo explicava um carioca lá residente, o povo só chama aquilo de favela é por ignorância. Porque favela, em linguagem do Rio, quer dizer morro, paisagem, arquitetura de passarinho e não aqueles barracos sujos entre a lama e o alagadiço. Favela é berço de samba, que o carioca dizia. Mas o pessoal deu para chamar favela a tudo que é acampamento de pobre e depois do diário da Carolina ficou por favela mesmo e pronto. Ninguém pode com literatura.

A tia da namorada do Ribamar arranjara-lhe um cartão de matrícula para a família na seção de empregos das Obras Sociais de São Jorge. 

Mas caridade particular, quando é feita em escala muito larga, vira igual coisa de governo: se burocratiza. As moças da Obra têm muita boa vontade, fazem as cartas de recomendação solicitando emprego às firmas, mas não vão saber se as cartas são atendidas, não é mesmo?

Seria impossível acompanhar cada pobre. Ver se o bilhete é recebido. Se o hospital tem leito vago. Se há vaga de emprego.

Organiza-se uma imensa máquina para trabalhar pelo amor de Deus ― mas parece que Deus não gosta de máquinas. Ademais, os caminhos de Deus são tão difíceis. Quem faz o gesto já acha que fez muito. E acaba ficando tudo na formalidade da apresentação — depois se entrega a Deus. E parece que até Deus se cansa.

Fica o coitado andando de Pilatos a Herodes, com o cartãozinho da Obra. Quando os homens do emprego desenganam logo, ainda bem, mas quando ficam cozinhando com pouco fogo ― venha amanhã, venha depois, só passadas cinco horas, amanhã não que é sábado, segunda também não, pensando bem só na terça... E o pobre tomando condução pra lá e pra cá, e gastando sapato, e paciência, e esperança... Ai, só quem sente sabe.

No fim foram vendo que só podiam contar com eles mesmos, e como eram nove, não incluindo o Ribamar, era afinal bastante gente.

Quem primeiro se empregou foi mesmo o Eliseu. Numa construção. Imagine quem toda a vida foi vaqueiro, no costume de não carregar nem o próprio corpo, pois só andava montado, virar servente de pedreiro, com o mestre a toda hora gritando pela massa, e o pobre de chouto com a lata na cabeça. Já estava de moleira baixa de tanto carregar peso.

E ainda se dava por feliz porque sendo ele o primeiro a se empregar, foi a bem dizer também o único. Os outros ainda estão na mão. A Zuila se colocou de aprendiz num salão de manicura, mas sem salário. O Francisquinho está pensando em sentar praça para ter caderneta de serviço militar. Os pequenos precisam é de escola. A velha, quando arranja o quê, cozinha. E tudo comendo, vestindo, andando, gastando calçado e condução. E tirando de onde?

O Ribamar que o diga — já vendeu o blusão de couro, os óculos, e empenhou o relógio.

Ai, São Paulo é muito bom, mas cidade grande é fogo. E o Ceará tão longe! E ainda por cima ser tratado de baiano.

*

Desculpem. Mas eu não disse que só tinha miséria? 

rachel-de-queiroz
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